Caminhos para educação e comunicação científica em tempos de negacionismo
Especialistas reunidos em congresso internacional promovido pelo IQC e Aspen Institute discutiram desafios e apontaram estratégias para levar conhecimento e esclarecimento à sociedade
Publicado em 24/03/2021 - 08h34, última atualização em 15/05/2023 - 23h09
Não basta informar, é preciso educar. Usar mensageiro e formato adequados para cada audiência é o caminho para fazer a informação e conhecimento científicos chegarem de modo eficaz, claro e compreensível aos diferentes públicos. Estes foram alguns dos desafios e estratégias discutidos por mais de 100 cientistas, pesquisadores, jornalistas e comunicadores de todo mundo ao longo dos quatro dias do Congresso Global de Pensamento Científico, evento promovido pelo Instituto Questão de Ciência (IQC) e o Aspen Institute entre 17 e 20 de março últimos.
Além das mesas de debate entre os participantes, o congresso contou com seis painéis abertos ao público, abordando os temas de uso de evidências para superação do negacionismo científico, educação e popularização da ciência, perigos da medicina alternativa, mudanças climáticas, hesitação vacinal e biotecnologia alimentar. A iniciativa, facilitada pelo formato virtual do evento – inicialmente previsto para acontecer em março do ano passado na Itália e adiado devido à pandemia de COVID-19 –, proporcionou a participantes e ao público a oportunidade de ter uma visão geral das discussões e contribuir com dúvidas e comentários, enriquecendo a conversa.
“A pandemia de COVID-19 deixou clara a importância do letramento e da comunicação científica tanto para governantes quanto para governados”, destaca Natalia Pasternak, presidente do IQC e copresidente do congresso. “O conhecimento e a compreensão da ciência são fundamentais para a elaboração e implementação de políticas públicas efetivas, baseadas em evidências, de contenção da doença pelas autoridades, como mostram exemplos de sucesso como Nova Zelândia ou fracassos, como a Suécia. Mas eles também são essenciais para adesão e respeito a estas medidas de prevenção pela população, como, infelizmente, ficou claro com a tragédia que enfrentamos no Brasil, que falhou nas duas pontas. Sem conhecimento, não há escolha consciente. Sem escolha consciente, não há cidadania. Sem cidadania, não há uma verdadeira democracia”.
Desafio que foi exposto por Abhilash Mishra, diretor da Iniciativa Xu de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Global da Universidade de Chicago, logo na sua apresentação, já no primeiro painel público do evento, “Construindo o diálogo sobre evidências e valores: superando o negacionismo científico”, que ele coordenou.
“Em retrospecto, fui muito ingênuo em achar que evidências científicas são tudo que importa para a elaboração de políticas públicas”, contou. “Levei muitos anos para reconhecer meu ponto cego, de que valorizo evidências de maneira muito diferente de um elaborador de políticas, ou mesmo dos cidadãos. Se vamos desenvolver de fato estratégias eficazes para combater o negacionismo científico, cabe a nós como cientistas, ativistas e comunicadores entender nosso público, de onde ele vem e quais os seus problemas. Espero que nossas discussões destaquem este espírito, de sermos curiosos, desmontarmos nossas suposições e possivelmente encontrarmos novas ideias. Nas palavras da autora americana (Casandra) Brené Brown, não estamos aqui para estarmos certos, estamos aqui para fazermos certo”.
Exemplo das dificuldades envolvidas é como transmitir para autoridades e público a própria natureza incerta do conhecimento científico, sempre aberto a questionamento e aprimoramento, chaves para seu avanço, ressaltou Stuart Firestein, chefe do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade de Colúmbia, EUA, em sua participação no segundo painel público do evento, “Letramento científico e popularização: entendendo como a ciência funciona”.
“Fracassamos em comunicar o valor da incerteza na ciência como algo positivo, e não negativo”, disse. “Como cientistas, temos que ter cuidado com o que prometemos. Há uma noção, entre os cientistas que querem se comunicar com o público, de que é melhor parecer que você sabe do que está falando, parecer ter certeza sobre algo, dizer algo como ‘isso é assim porque sou uma autoridade no assunto’. Mas temos que abrir mão disso de alguma maneira, e há muitas formas de fazer isso. Tem uma citação maravilhosa do ex-presidente Harry Truman, o primeiro dos EUA e ter um conselheiro científico, que num determinado momento pediu ‘alguém pode por favor me arrumar um cientista com um lado só?’ pois nas reuniões este conselheiro faria uma longa apresentação sobre alguma questão, o que ele poderia ou deveria fazer, etc., apenas para no final ressalvar ‘mas, por outro lado…’ e fazer uma recomendação completamente diferente. Era frustrante para Truman porque, claro, ele queria uma recomendação clara sobre o que decidir. Mas todos também sabemos que dois lados são melhores que um. Então, temos que estar prontos para isso, para comunicar que há múltiplas maneiras de pensar sobre algo, que a ciência é uma delas, muito poderosa por sinal, mas não é a única”.
Mensageiro certo
Diante disso, também é preciso, mais que formatar e adaptar o discurso científico à audiência, ter como mensageiro, de preferência, integrantes das próprias comunidades ou grupos que se pretende alcançar e informar. Tal diversidade de vozes seria capaz não só de passar a informação como estabelecer, ou restabelecer, a confiança na ciência envolvida, defenderam especialistas que participaram dos painéis públicos do terceiro dia do congresso, “Extinguindo o fogo do negacionismo das mudanças climáticas” e “Vencendo a hesitação vacinal pela comunicação”.
“A comunicação das mudanças climáticas precisa educar, informar, aprender, persuadir, mobilizar e resolver esta emergência global”, considerou Hajar Khamlichi, presidente e cofundadora da Rede Jovem Mediterrânea para o Clima e integrante do conselho da Aliança Marroquina para o Clima e o Desenvolvimento Sustentável. “Mas, num nível mais profundo, a comunicação sobre mudanças climáticas deve ser moldada às nossas diferentes experiências, nosso modelo cultural, valores subjacentes e visões de mundo. Para muitas pessoas, as mudanças climáticas são uma mera conjectura, que não significa muito. Uma das razões para isso envolve questões de confiança pública na ciência, mas também a percepção de que as mudanças climáticas são apenas um interesse empresarial. Aí entra o papel da linguagem que usamos. Metáforas, palavras, estratégias de enquadramento das narrativas devem ser moldadas para levar as questões relativas às mudanças climáticas para diferentes atores, seja do público ou tomadores de decisão. E temos que combinar estas narrativas diretas com imagens vívidas recheadas de informação científica com uma entrega por mensageiros confiáveis no ambiente do grupo. Pensar que o mensageiro é tão importante quanto a própria mensagem”.
Estratégia similar à defendida pela senegalesa Fara Ndiaye, vice-diretora executiva da Speak Up Africa, no painel sobre hesitação vacinal, em especial neste cenário de pandemia:
“No contexto atual é importante que trabalhemos lado a lado com organizações confiáveis da sociedade civil e influenciadores, ênfase no confiáveis, que vão defender a importância da imunização em seus países, em nível regional e também global. Esta necessidade nunca foi tão grande como agora. Se vamos tentar atingir uma equidade na imunização, precisamos garantir que haja um maior engajamento sistemático e ativo de organizações da sociedade civil e da comunidade. Até porque a vacinação é uma estratégia comunitária de saúde. O fato é que precisamos diversificar as parcerias e mesmo mudar a visão que temos de que a imunização é um problema dos governos”.
Genética
Estratégias de construção de confiança na comunicação científica que também podem ser úteis para esclarecer o público e modificar percepções errôneas sobre plantas e outros organismos geneticamente modificados, tema do painel “Biotecnologia alimentar para um futuro sustentável”, que fechou o congresso no sábado.
“Plantas biotecnológicas estão no mercado há 25 anos, 29 países as cultivam, 70 países as compram e trilhões de refeições foram preparadas e consumidas por pessoas de todo mundo, sem diferença de idade, gênero e grupo étnico, como num ensaio clínico, mas muito maior”, enumerou Mahaletchumy Arujanan, coordenadora global do Serviço Internacional para Aquisição de Aplicações Agriobiotécnicas (ISAAA, na sigla em inglês), diretora executiva do Centro de Informação Biotecnológica da Malásia e coordenadora do painel.
“Apesar disso, o debate (em torno da segurança de alimentos transgênicos) não diminuiu. De fato, os críticos continuam a produzir pseudociência e estratégias para atrapalhar o desenvolvimento e adoção de novas tecnologias de produção. Como comunicadora científica, diria que estaríamos nos enganando se acharmos que a edição genética terá uma passagem fácil com menos manchetes, regulamentação frouxa e aceitação pública. Precisamos mudar a narrativa e recomeçar a discussão tendo em vista os erros do passado, o modelo de negócios e presumir que ciência e educação seriam suficientes para mudar a opinião pública”.
Os painéis públicos do Congresso Global de Pensamento Científico estão disponíveis no canal do Aspen Institute no YouTube, que pode ser acessado aqui.
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