O Instituto Questão de Ciência (IQC) e a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) promoveram em São Paulo, em 30 de março e 1º de abril últimos, um curso sobre hesitação vacinal voltado para médicos da especialidade. No evento com participação da presidente do instituto, Natalia Pasternak, cerca de 50 pediatras vindos de afiliadas da SBP em todo país aprenderam as principais estratégias de desinformação usadas para espalhar mentiras sobre vacinas e como refutá-las quando se depararem com elas em seus consultórios. Também foram apresentados resultados preliminares de pesquisa ainda em curso, via internet, em que os pediatras relatam sua experiência com a hesitação vacinal.
Evolução de iniciativa semelhante do IQC com a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) realizada em julho do ano passado no Rio de Janeiro, o novo curso teve sua duração estendida para dois dias. Isto permitiu um aprofundamento das exposições e debates sobre as táticas usadas por grupos negacionistas e movimentos antivacina para minar a confiança da população nos imunizantes. Além disso, houve mais tempo para os médicos participarem de exercícios em que puderam lançar mão dos conceitos e técnicas aprendidas na prática, com destaque para jogo de representação em que voluntárias encarnaram mães, vítimas de desinformação, que chegam aos seus consultórios com dúvidas e questionamentos sobre as vacinas, que puderam então esclarecer.
“Este é um tema tão importante quanto novo para os pediatras”, ressaltou Renato Kfouri, presidente do Departamento de Imunizações da SBP e um dos organizadores do curso durante a cerimônia de abertura, que também contou com as presenças do presidente da SBP, Clóvis Francisco Constantino; de José Luiz Gomes do Amaral, presidente da Associação Paulista de Medicina; da representante da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) Lely Guzmán; e de Ana Goretti Maranhão, representante do Departamento de Imunizações do Ministério da Saúde, e da presidente do IQC. “Há uma década, não se imaginava que seria necessário um evento que abordasse porquê vacinar. Assim, este curso nasce da percepção da necessidade que os pediatras tenham ferramentas e instrumentos para tratar deste assunto, seja na prática individual de cada um ou junto à sociedade. Devemos sair daqui como promotores, multiplicadores da informação em um país tão diverso com o Brasil. Seremos profissionais melhores e com condições de refutar o negacionismo e a desinformação”.
Ainda durante a cerimônia de abertura, Pasternak salientou a mudança no cenário da vacinação no Brasil nos últimos anos, com a cobertura vacinal caindo em paralelo à disseminação de desinformação pelos movimentos antivacina no país.
“Não faz muito tempo, o pediatra dizia para os pais que era hora de vacinar a criança eles iam lá e vacinavam. Hoje ele fala isso e alguns pais respondem simplesmente que ‘decidimos não vacinar’ nosso filho”, lamentou. “Mas existem estratégias específicas para lidar com esta desinformação, baseadas na ciência e no melhor conhecimento atual sobre o assunto, e é isso que vamos ver neste evento. Vamos trazer estas estratégias para que o combate à desinformação seja efetivo e também seja feito de forma gentil, ouvindo as pessoas, seus temores e suas dúvidas”.
Encerrando a cerimônia de abertura, Clóvis Constantino relatou um caso emblemático das táticas de desinformação sobre vacinas e como ela se espalhou pela sociedade brasileira. Ofendido por integrantes de movimentos antivacina – que o chamaram de “assassino de crianças” por defender a vacinação de menores de idade contra a COVID-19 -, o presidente da SBP ingressou na Justiça paulista pedindo a punição e indenização de seus detratores. O juiz que analisou a ação, no entanto, indeferiu o pedido e arquivou a demanda, redigindo uma decisão que evidencia as falsas polêmicas sobre a segurança e eficácia das vacinas levantadas pelos negacionistas.
“Com efeito, a discussão sobre a eficiência e segurança da vacina contra a COVID-19 é tema polêmico, dividindo a classe médica e científica, mesmo passados quase 3 (três) anos da pandemia”, escreveu o magistrado. “Tanto é certo que a vacina ajudou a combater os efeitos da COVID-19, quanto ela ter efeito colateral em alguns casos. É certo ainda, que a pandemia COVID-19 surpreendeu a comunidade médico-científica que não encontrou resposta rápida e confiável para o combate da transmissão do vírus e tratamento dos infectados. Desta feita, a discussão, como trazida nestes autos, sobre a eficácia e segurança da vacina para crianças somente será esclarecida com o passar dos anos, o que impede recriminar ou repreender quem defendeu um ou outro caminho (vacinar ou não)” (sic).
A verdade, porém, é que tanto os testes prévios ao uso em massa das vacinas quanto o acompanhamento das bilhões de doses aplicadas até agora mundo afora deixam claro que elas são seguras e eficazes tanto para adultos quanto crianças, e tampouco há uma “divisão” da classe médica brasileira sobre o assunto, com quase a totalidade dos profissionais de saúde e organizações médicas defendendo e recomendando a vacinação.
“E é justamente por isso que estamos aqui. A hesitação vacinal independe da posição socioeconômica e cultural, podendo atingir qualquer um”, frisou Constantino.
Infodemia e decisão
Iniciando as palestras do curso, a pediatra e diretora da SBIm, Isabella Ballalai, abordou a “pandemia de desinformação”, ou infodemia, que se espalha pelo mundo desde antes da crise da COVID-19, prejudicando não só a cobertura vacinal como diversas áreas da saúde individual e coletiva.
“A infodemia é uma emergência de saúde pública que o Brasil ainda não se deu conta”, disse. “A desinformação pode matar, e se espalha em progressão geométrica como um vírus. Como entender, por exemplo, um médico que a vida inteira foi a favor das vacinas, mas agora se coloca contra uma específica (a da COVID-19)? Ou pais que sempre vacinaram seus filhos, mas agora chegam nos consultórios dizendo que não querem mais vacinar? Temos que tratar a desinformação como uma doença, porque ela causa morte, causa hospitalizações, e acolher estas pessoas. Não brigue, não fique irritado porque ela diz que não quer vacinar os filhos. Diga que também ouviu estas alegações, também ficou na dúvida, mas que buscou se informar e que nada disso é verdade”.
Neste sentido, ganha importância entender o processo decisório em torno de se vacinar ou levar os filhos para a vacinação, tema da palestra seguinte, do diretor executivo do IQC, Paulo Almeida. Na sua apresentação, Almeida elencou os fatores ambientais, sociais e comportamentais que influenciam nesta decisão e vão além da informação, incluindo acesso e disponibilidade dos imunizantes, dificultado, por exemplo, com limitações nos dias e horários de funcionamento dos postos de vacinação – em geral, apenas nos dias de semana em horário comercial -, quando pais em mães estão ocupados trabalhando.
“São muitas questões relacionadas à vacina que vão além da informação”, contou. “Por isso precisamos entender a motivação, o que leva uma pessoa a decidir sair de casa, ligar o carro, pegar um ônibus ou o que seja e ir se vacinar ou levar os filhos para vacinar. Tudo isso parte de um ambiente propício, pequenas coisas que podem ajudar a aumentar a cobertura vacinal, como levar a vacinação para as escolas, tornar normas sociais favoráveis à vacinação mais evidentes, e reconstruir a confiança nas vacinas com estratégias como arrependimento antecipado, como o medo de não se vacinar e ficar doente, além de enfatizar a vacinação como um benefício social e coletivo, não só uma proteção individual”.
Fechando a primeira rodada de palestras, a presidente do IQC, Natalia Pasternak, abordou as origens da hesitação vacinal e sua relação com a desinformação, que vem desde os experimentos iniciais com o vírus da varíola da escritora inglesa Mary Wortley Montagu no início do século 18, décadas antes do também inglês Edward Jenner criar a primeira vacina contra a doença, baseada no vírus da varíola bovina. Após expor alguns incidentes que abalaram a confiança global nas vacinas – como o caso envolvendo a vacina da pólio do laboratório Cutter, nos EUA, nos anos 1950, ou a crise relacionada à vacina DTP na Inglaterra nos anos 1970 -, culminando com o estudo fraudulento do ex-médico britânico Andrew Wakefield que ligou a vacina tríplice viral a casos de autismo no fim dos anos 1990, Pasternak citou algumas das principais falácias usadas pelos movimentos antivacina para espalhar medo.
“É neste contexto que a gente precisa trabalhar”, indicou a presidente do IQC. “Temos que lidar como expectativas impossíveis, tipo ‘você garante que a vacina é 100% segura e eficaz e tem 0% de efeitos colaterais?’ e explicar que isso não existe, que até deixar a criança brincar no parquinho é um cálculo de risco. Temos também o complexo de Frankenstein, a falácia do natural contra o artificial, sintético, em que intuitivamente muitas pessoas acreditam que qualquer coisa que mexa com a natureza, manipule a vida, é essencialmente errada e a ‘criatura’ vai se voltar contra seu criador”.
Mais que isso, Pasternak alertou que muitas vezes os movimentos antivacinas focam e cooptam públicos específicos, como mães de filhos acometidos por alguma condição que foi – erroneamente – atribuída à vacinação, para reforçar seu discurso, tendo como pano de fundo interesses políticos, ideológicos e até financeiros, com o mercado em torno dos movimentos antivacina, com a venda de livros e suplementos que “melhoram a imunidade” rendendo cerca de US$ 1,1 bilhão anuais apenas nos EUA.
“A desinformação é uma mentira com agenda. Não é uma mentira inocente. Ela tem fins financeiros, ideológicos e políticos”, destacou. “É um medo abusado pelos movimentos antivacina. As mães que chegam nos seus consultórios vêm com dúvidas que foram plantadas por este movimento. Mas os pediatras têm uma grande vantagem: os pacientes confiam em vocês. Assim, o trabalho de vocês pode impactar muito mais diretamente do que um artigo de jornal ou um vídeo de YouTube. Vamos ouvir os pacientes, saber os sentimentos e dúvidas que têm, educar e explicar até que um dia as pessoas também estejam vacinadas contra a desinformação. No fim das contas, isso é nossa responsabilidade, não da imprensa, não de governos”.
Tragédia na cobertura vacinal
Continuando as palestras do dia, foi a vez de Renato Kfouri, presidente do Departamento de Imunizações da SBP, traçar um panorama da atual cobertura vacinal no Brasil, em especial dos imunizantes pediátricos. E o cenário é trágico. Outrora referência mundial na área, o país viu as taxas de cobertura vacinal desabarem nos últimos anos, o que trouxe de volta doenças como o sarampo – e levou à perda, em 2019, do certificado de eliminação desta doença conferido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2016 – e colocou o Brasil na lista de países com maior risco de verem o ressurgimento da poliomielite nas Américas, ao lado de Haiti, República Dominicana e Peru.
Dados do Sistema Único de Saúde (SUS) apresentados por Kfouri mostram que no caso da vacina tríplice viral – que além de proteger contra o sarampo, imuniza crianças com mais de um ano contra caxumba e rubéola -, por exemplo, a cobertura vacinal, que superava os 95% desde os anos 1990 até 2016, caiu para a faixa dos 76% para a primeira dose, e dos 53% para a segunda dose, em 2022. Já a primeira dose contra a pólio, dada a bebês com menos de um ano, a cobertura foi de mais de 98% em 2015 para 72% em 2022, enquanto o primeiro reforço, já com mais de um ano de idade, que chegava a 84% das crianças em 2015, atingiu apenas 64% delas no ano passado.
Segundo Kfouri, porém, para além da tragédia da queda nestes números, a cobertura vacinal no Brasil enfrenta desafios em três vertentes: a homogeneidade, isto é, a grande diferença nas taxas entre as diferentes vacinas e regiões, estados e municípios do país; o abandono, ou seja, o grande número de crianças e indivíduos que até começam a tomar as vacinas, mas não completam o esquema vacinal, como ilustrado nas diferenças de cobertura entre primeira e segunda dose da tríplice viral e da pólio nos exemplos anteriores; e oportunidade, isto é, aplicar as vacinas nas idades que terão maior impacto na prevenção das doenças e suas consequências.
“Vacinar mais significa proteger indiretamente a todos, não só aqueles que são vacinados”, disse. “Sabemos das dificuldades de acesso e comunicação sobre as vacinas, mas precisamos continuar motivando as pessoas a se vacinarem mesmo num contexto difícil”.
A COVID-19 e as crianças
A seguir foi a vez do pediatra Marco Aurélio Sáfadi falar sobre o impacto da COVID-19 na população infantil brasileira e como ele foi ampliado pela desinformação em torno da doença, tornando o Brasil um dos países com maior proporção de crianças e adolescentes mortos na pandemia – 46 óbitos para cada milhão de habitantes destas faixas etárias, quase cinco vezes a taxa dos EUA (10 mortes por milhão) e mais de dez vezes a do Reino Unido (4,2 mortes por milhão).
Segundo Sáfadi, dados oficiais apontam que entre 2020 e dezembro de 2022 pouco mais de 3,5 mil crianças e jovens com menos de 19 anos morreram de COVID-19. Mas enquanto no primeiro ano da pandemia mais de 50% das vítimas tinham entre 6 e 19 anos, em 2022 essa relação se inverteu, com mais de 60% dos mortos menores de cinco anos, sendo 36,8% com menos de um ano.
“É muito simples imaginar qual foi o fator que levou a este aumento na proporção de menores de cinco anos nas hospitalizações e mortes: é o grupo que foi alvo da menor taxa de vacinação, ou não tinha vacina disponível”, observou.
Outro problema preocupante neste grupo é a chamada “Covid Longa”, cuja carga real ainda não está clara entre as crianças, e o desenvolvimento de uma condição conhecida como Síndrome Inflamatória Multissistêmica em Crianças (MIS-C, na sigla em inglês). A boa notícia, no entanto, é que estudos mostram que as vacinas disponíveis ajudam a prevenir tanto a infecção pelo SARS-CoV-2, vírus causador da COVID-19, quanto estas complicações, além de terem se mostrado seguras para este público, com os raríssimos relatos de casos de miocardite relacionados às vacinas de RNA mensageiro (mRNA), como a da Pfizer, se resolvendo espontaneamente em poucas semanas.
“É uma evolução muito diferente que nós pediatras estamos acostumados a ver com miocardites provenientes de infecções virais, que podem acontecer com muito mais frequência do que com a vacina”, destacou.
O medo como doença
Fechando o primeiro dia do curso, os palestrantes seguintes apresentaram seus pontos de vista de especialistas em aspectos específicos relacionados à vacinação. Psiquiatra e pesquisador do Laboratório de Neurociências do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), José Gallucci Neto abordou as reações de estresse relacionadas à imunização tendo como ponto de partida o episódio de crises psicogênicas em massa envolvendo adolescentes vacinadas contra o papilomavírus humano (HPV) no Acre.
Registrado pela primeira vez no estado da Região Norte durante campanha de vacinação em 2015 e com recorrências nos anos seguintes, o fenômeno provoca sintomas reais, como dores, tonturas, cegueira, paralisia e até convulsões, tendo afetado pelo menos 82 garotas até o fim de 2019. Suas causas, porém, não são problemas físicos ou agentes externos como vírus ou poluentes, mas estados emocionais. Relato sobre o caso rendeu à jornalista Ruth Helena Bellinghini, então editora-assistente da Revista Questão de Ciência – publicada pelo IQC – o Prêmio SBIm de Jornalismo em Saúde na categoria “Digital” de 2020.
“O fato de o fenômeno ser psicogênico não quer dizer que ele não possa ser grave”, lembrou Gallucci. “A reação psicogênica é algo individual, mas também pode ser contagiosa. E o caso do Acre é um exemplo disso”.
Segundo o psiquiatra, estas ocorrências e outras semelhantes registradas no Brasil e outros países acabam por alimentar a hesitação vacinal mesmo com os sintomas não tendo relação direta com a vacina, o que reforça a importância do diagnóstico correto e comunicação dos episódios de reação psicogênica.
“A interpretação equivocada de reações psicogênicas como reações neurológicas à vacina pode ser um grande motor da hesitação vacinal na população em geral tendo como impulsionadora os próprios médicos”, alertou.
A vacina como direito
Já Luciana Bergamo, promotora de Justiça da Infância e da Juventude do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), contou como em 2018 abriu procedimento para investigar a queda na cobertura vacinal no país. Iniciado em 2018, o inquérito civil culminou com decisão de 2020 do Supremo Tribunal Federal (STF) considerando a vacinação um direito das crianças acima da liberdade de crença e pensamento de seus pais.
Na palestra, Bergamo explicou que a supremacia deste direito é baseada no artigo 227 da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, e ao artigo 4 da Lei 8.069 de 13 de julho de 1990 – conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) -, que segue a mesma linha ao determinar que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.
Ou seja, que não cabe só à família garantir o direito à vida das crianças, mas também à sociedade e ao Estado, como seu ator último.
Apesar disso, a promotora frisou que ninguém deve tomar uma criança à força de seus pais e levá-la para ser vacinada, cabendo ao Estado instituir mecanismos que levem os pais a atender à obrigação conforme estipulado pelo mesmo ECA em seu artigo 14.
“Vacina obrigatória não é compulsória. Ninguém vai pegar a criança à força pelo braço, mas o poder público pode usar diversas estratégias para compelir os pais a vacinar as crianças, como a exigência de caderneta nas escolas ou para receber recursos de programas sociais como o Bolsa Família”, disse.
Para médicos que espalham desinformação sobre vacinas, por sua vez, a promotora defendeu a responsabilização na Justiça com base no artigo 268 do Código Penal, segundo o qual é crime “infringir determinação do poder público destinada impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”, com pena de detenção de um mês a um ano aumentada em “um terço se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro”, bem como punição pela classe segundo o Código de Ética Médica com base no artigo 44, que considera infração “deixar de colaborar com as autoridades sanitárias ou infringir a legislação pertinente”. Isso sem contar processo de responsabilidade civil por dano moral coletivo.
“Médicos que espalham desinformação e desestimulam a vacinação devem ser responsabilizados por isso”, afirmou.
A desinformação nos consultórios
Já o segundo dia do curso foi dedicado ao detalhamento das táticas de desinformação usadas pelos movimentos antivacina e como combatê-las, numa jornada que foi da teoria à prática. Antes disso, porém, Luiz Gustavo Almeida, coordenador de ações de educação do IQC, apresentou resultados preliminares de pesquisa ainda corrente com pediatras sobre hesitação vacinal e como a desinformação surge em seus consultórios da boca de pais e mães das famílias que atendem na sua prática do dia a dia. Até o momento da apresentação, 688 pediatras haviam respondido o formulário de 46 itens, sendo 78% mulheres, 26% com mestrado e 12% doutorado, a maior parte com entre 40 e 60 anos concentrados principalmente em São Paulo (20,38%) e Rio de Janeiro (18,63%).
Do total, 476 pediatras relataram terem atendido famílias nos últimos seis meses que não cumpriam o calendário vacinal recomendado pelo Ministério da Saúde, numa média de 10 atendimentos nesta situação. As justificativas fornecidas foram principalmente receio de efeitos adversos (19,83%) e falta de confiança na segurança das vacinas (19,65%), mas também houve muitos casos de “esquecimento” (18,16%) e problemas de acesso, como falta da vacina no serviço público (17,58%), horário limitado dos postos de saúde da rede pública (8,47%) e dificuldades de acesso em geral (5,07%).
Os pediatras participantes também relataram uma grande preocupação das famílias com a segurança das vacinas, com 71% contando terem atendido pessoas que questionaram esta segurança de ocasionalmente a sempre no mês anterior, principalmente com relação à vacina da COVID-19, que respondeu por 82,41% dos questionamentos. As redes sociais (31,86%) foram a principal fonte desta hesitação, seguidas da mídia em geral (17,97%), internet (12,88%), fake news (11,3%) e mensagens no WhatsApp (9,94%).
Apesar disso, quase 95% dos pediatras ouvidos disseram se sentir à vontade para educar as famílias hesitantes quanto às vacinas, com 92% afirmando explicar sempre a segurança das vacinas e os riscos do possível adoecimento, não sendo problema para maioria (54%) a falta de conhecimento atualizado sobre as vacinas nem de habilidades de comunicação (68%) ou de argumentos (66%) para lidar com os pais da criança. Mesmo assim, 64% disseram ser um problema médio a grande não ter materiais educativos que possam encaminhar para os pais, e a metade um grande problema encarar a atitude negativa dos pais quanto à vacinação.
Poucos dos pediatras respondentes endossam ou acreditam em discursos comuns de desinformação sobre as vacinas, com 98% acertadamente negando qualquer relação da tríplice viral com casos de autismo, 93% da vacina do rotavírus com desenvolvimento de alergias à proteína do leite, 97% não vendo ligação entre a administração da vacina do HPV na adolescência com início precoce da vida sexual e 91% afirmando não haver qualquer risco de modificação do DNA pelo uso de vacinas com o mecanismo de mRNA. Assim, também não é surpresa que 73% afirmem ter total confiança na segurança das vacinas, e 80% considerando fundamental a vacinação das crianças contra a COVID-19 diante dos riscos de agravamento da doença também para elas.
Da teoria à prática
A seguir, a presidente do IQC, Natalia Pasternak, voltou a abordar as principais táticas usadas para desinformação, como identificá-las e as técnicas desenvolvidas pela ciência para combatê-las. Conhecimento que depois seria posto à prova em exercícios práticos durante as sessões da tarde de sábado do curso, incluindo um inédito jogo de representação.
Antes, porém, a teoria. Pasternak ressaltou que embora seja necessário separar controvérsias verdadeiras de falsas polêmicas, a manipulação da opinião pública pode acabar legitimando alguma destas por mais absurdas que pareçam – e fazendo com que surjam nos consultórios como nos exemplos usados na pesquisa com pediatras. Assim, ela frisou a importância de saber comunicar as incertezas da ciência, bem como acolher e ouvir os pacientes para entender seus medos e identificar a que tipo de estratégia de desinformação eles podem ter sido expostos.
Neste ponto, a presidente do IQC recorreu ao trabalho de John Cook, cientista australiano que em suas pesquisas sobre negacionismo climático nas últimas décadas montou um guia prático para identificação das estratégias da desinformação.
Conhecida pela sigla FLICC, sua tabela vai desde o uso de falsos especialistas para alimentar dúvidas inexistentes em torno dos temas alvo – como a influência humana no aquecimento global e nas mudanças climáticas – à propaganda conspiracionista, passando por falácias lógicas de variados tipos, como ataques ad hominem, ambiguidades deliberadas, espantalhos, expectativas impossíveis, evidências anedóticas e cherry picking. Segundo Pasternak, o mesmo padrão pode ser aplicado na desinformação sobre saúde, seja no discurso antivacina ou na defesa dos tratamentos “alternativos” das chamadas “práticas complementares” oferecidas pelo SUS.
“O que temos que entender é que por trás disso tem muito dinheiro. Tem gente querendo te vender desinformação. Tem gente querendo te vender certezas absolutas, e a ciência não funciona assim”, alertou.
Diante disso, a presidente do IQC explicou que identificada a desinformação, deve-se refutá-la, uma vez que estudos apontam que fontes com alta credibilidade, como médicos, são uma ferramenta poderosa para combater mitos na saúde. E, para isso, uma das ferramentas recomendadas pela ciência é uma estratégia conhecida como “sanduíche de verdade”, em que deve-se começar o discurso com uma informação correta – “as vacinas são seguras”, por exemplo – para só depois introduzir o mito espalhado pela desinformação – “mas há quem diga que elas podem causar autismo”, que deve ser prontamente rechaçado – “esta afirmação, porém, é baseada em um estudo fraudulento cujo autor tinha interesses financeiros e inclusive perdeu sua licença de médico”, finalizando novamente com um fato – “todas as vacinas liberadas para uso atualmente foram exaustivamente testadas para sua segurança, e sua aplicação é monitorada constantemente para eventos adversos graves, que são muito raros”.
“Pode ser um pouco difícil não abordar o mito logo de cara, mas estudos mostram que esta técnica é muito boa para fazer a informação correta ‘grudar’ na cabeça das pessoas sem reforçar a desinformação”, comentou.
Pasternak convidou então os presentes a participar dos primeiros exercícios do dia, montando “sanduíches de verdade” em torno de mitos comuns acerca das vacinas e, reunidos em grupo, identificar as diferentes falácias apresentadas num vídeo. Práticas que continuaram à tarde, agora coordenadas por Luiz Gustavo Almeida, responsável por ações educativas do IQC. Depois de uma rodada de “Go Viral!”, jogo online desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Cambridge, Reino Unido, que tem como alvo a infodemia em torno da COVID-19 como estratégia de aprendizado sobre os métodos da desinformação e seu uso, duplas de voluntários simularam a interação entre pediatras e pacientes em situações de negacionismo ou desinformação sobre vacinas.
Este inédito jogo de representação ajudou a dar destaque a mitos e dúvidas comuns que os médicos ouvem em seus consultórios. Em uma das duplas, por exemplo, a “paciente” questionou a segurança do armazenamento das vacinas nos postos de saúde, para o qual há um rigoroso controle de qualidade. Já outra repetiu preocupações com relação à velocidade que foram desenvolvidas as vacinas contra a COVID-19, além de discursos conspiracionistas das redes sociais como de que o vírus e a doença não existem, ao que a pediatra explicou que a velocidade foi fruto dos altos investimentos e do fato de que as plataformas usadas pelas vacinas já estavam em estudo há muitos anos, o que é bom, porque a previsão é de que teremos mais pandemias à medida que os seres humanos vão entrando em ambientes novos nos quais circulam muitos vírus entre animais.
Terminados os exercícios, o presidente da SBP, Clóvis Francisco Constantino, e o presidente do Departamento de Imunizações da sociedade, Renato Kfouri, encerraram o curso destacando a necessidade dos pediatras presentes espalharem o conhecimento adquirido entre seus colegas.
“Certamente a partir de segunda-feira todos pacientes que forem aos seus consultórios serão ainda melhor atendidos”, concluiu Constantino.