Possível revisão se segue a campanha de esclarecimento da presidente do IQC e do instituto sobre ausência de evidências de eficácia da prática
A homeopatia pode perder o reconhecimento como especialidade médica no Brasil, que goza desde 1980. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o 1ᵒ vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Jeancarlo Cavalcante, informou que vai levar o assunto para análise da Comissão Mista de Especialidades, formada pelo CFM, Associação Médica Brasileira (AMB) e pelos ministérios da Saúde e da Educação, que desde 2015 é responsável por este tipo de decisão. A iniciativa se segue a campanhas de esclarecimento promovidas pelo Instituto Questão de Ciência (IQC) e sua presidente, Natalia Pasternak, sobre a ausência de evidências científicas de qualidade sobre a eficácia da prática, criada pelo médico alemão Samuel Hahnemann no fim do século 18.
“O CFM reconhece essa especialidade, porém, como órgão regulador, está aberto para novas discussões. Caso as evidências sejam questionadas, nada impede uma nova análise. […] Eu vou pedir para minha equipe coletar essas evidências (sobre a ineficácia da homeopatia) e vou levar à apreciação dos conselheiros”, disse Cavalcante ao Estadão.
Pasternak critica o status da homeopatia como especialidade médica no Brasil – um dos poucos países no mundo a assumir esta posição – desde antes da fundação do IQC, em 2018. Na época, ela assinou com Edzard Ernst, pesquisador alemão de práticas da chamada “medicina alternativa” de renome internacional, artigo de opinião do jornal Folha de S.Paulo em que chamava atenção para o caráter implausível dos princípios da prática, como a diluição sucessiva das substâncias com as quais se propõe tratar os pacientes, à luz da ciência moderna.
“Uma diluição homeopática muito comum é a ‘C30’, o que significa uma sequência de 30 diluições consecutivas, à taxa de uma parte de princípio ativo para 100 partes de solvente. Isso significa que uma gota do material original é dissolvida em 1 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 gotas de diluente (água, por exemplo). Isso equivale a menos de uma molécula da substância original em meio a todas as moléculas do Universo”, escreveu a dupla.
Assim, no final de 2019, um ano depois de sua criação, o IQC lançou a Campanha 10^23 com o objetivo de esclarecer e sensibilizar a opinião pública sobre a ineficácia da homeopatia. O termo 10^23 é uma referência ao número de Avogadro, representando o grau de diluição a partir do qual não se encontra mais nenhuma molécula do suposto princípio ativo no produto final. Pouco depois, porém, Pasternak e o instituto tiveram que redirecionar seus esforços para a luta contra a desinformação na pandemia de COVID-19, deixando a campanha em segundo plano.
Isso não quer dizer, no entanto, que a luta foi abandonada. Ainda em 2020, o IQC celebrou seus dois anos com o lançamento de um “contra-dossiê” sobre a homeopatia, resposta ao “Dossiê Especial: Evidências Científicas em Homeopatia”, elaborado pela Câmara Técnica de Homeopatia do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e publicado em 2017 como edição especial da revista da Associação Paulista de Homeopatia (APH). Organizado pelos colaboradores do instituto Luiz Gustavo de Almeida, doutor em microbiologia e diretor de educação científica do IQC, e o jornalista científico Cesar Baima, o contra-dossiê traz textos de especialistas que analisam, comentam e refutam os principais artigos do “Dossiê Especial” da câmara técnica do Cremesp que supostamente apoiariam cientificamente a prática da homeopatia.
Um ano depois, com o avanço da vacinação e o arrefecimento da pandemia, em novembro de 2021 o IQC retomou a Campanha 10^23 sob o slogan “Homeopatia é feita de nada”. Reforçado pelas lições aprendidas como uma das principais lideranças no combate ao negacionismo e a desinformação durante a crise da COVID-19, inclusive com a participação de Pasternak na CPI da Pandemia, o instituto voltou a focar em um dos seus principais objetivos, a defesa de políticas públicas baseadas em evidências.
Como lembraram Marcelo Yamashita, diretor científico do IQC, e Carlos Orsi, seu diretor de comunicação, no texto de anúncio de relançamento da iniciativa, “nenhuma ideia, por mais errada que seja, realmente ‘morre’ enquanto existir uma comunidade investida em mantê-la em circulação”, o que “não é, claro, uma propriedade exclusiva da homeopatia: astrologia, reiki, aromaterapia, exemplos outros não faltam”. Segundo eles, a pandemia mostrou que “não é pequena a legião de defensores da ciência”, mas também deixou no ar “o quanto desse consenso em torno do valor intrínseco da evidência empírica e do método científico se manterá quando for a hora de apontar as inadequações de práticas e doutrinas de longa tradição”.
Problema que ficou claro na resposta do Ministério da Saúde aos questionamentos do Estadão sobre seu posicionamento quanto à falta de evidências científicas de eficácia da homeopatia, dado que ela é oferecida no Sistema Único de Saúde (SUS) como parte da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC). Instituída em 2006, a PNPIC incorporou 29 destas práticas pseudocientíficas no sistema saúde com atendimentos pagos com recursos públicos, incluindo, além da homeopatia, abordagens como naturopatia, quiropraxia e ozonioterapia que não só carecem de evidências de eficácia como podem ser perigosas para os pacientes.
“A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC) está em processo de discussão e ampliação de oferta de serviços a partir das melhores evidências científicas e do objetivo terapêutico”, respondeu o ministério em nota ao Estadão, acrescentando que a atual gestão da pasta “valoriza a ciência sem deslegitimar os saberes tradicionais – especialmente dos povos que vivem no Brasil, como indígenas e quilombolas – que também devem ser valorizados”.
Acontece que esta argumentação, além de falaciosa na teoria, é falsa na prática: a homeopatia, como vimos, é de origem alemã; terapias florais (também conhecidas como “florais de Bach”) são inglesas; reiki é japonês; e a quiropraxia uma ideia ruim made in USA, inventada por Daniel David (D.D.) Palmer, um charlatão canadense radicado nos EUA, no fim do século 19. Das 29 práticas da PNPIC, apenas uma pode vir a incluir os tais “saberes tradicionais” dos povos brasileiros, e mesmo assim de maneira tangencial: a fitoterapia, com seu uso de plantas medicinais.
Tampouco estas práticas são tão “tradicionais” e antigas assim. Mais uma vez, boa parte foi criada do século 19 para cá, sendo ou relíquias de uma era pré-científica, como a homeopatia, ou desenvolvimentos mais recentes – lista que vai da aromaterapia ao termalismo – que buscam se apropriar dos benefícios inespecíficos da atenção à saúde, como o conhecido “efeito placebo”. Mesmo a chamada “Medicina Tradicional Chinesa” não é exatamente “tradicional”, mas uma criação do líder comunista Mao Zedong, que juntou todos os tratamentos históricos da China sob esse guarda-chuva e inventou os “médicos de pés descalços” para praticar a MTC não porque acreditasse nela, mas porque havia uma escassez desesperadora de médicos de verdade na China, e o país precisava pelo menos aparentar ter um sistema de saúde.
Ao longo dos seus agora quase 5 anos de existência, o IQC tem buscado ser uma fonte de informações confiáveis em saúde e outros temas relevantes da atualidade, como as mudanças climáticas, em um ambiente social de crescente ruído e desinformação. Neste meio tempo, a Revista Questão de Ciência, publicação digital do instituto, produziu dezenas de artigos e textos sobre as práticas da PNPIC e outras iniciativas pseudocientíficas ou questionáveis. A possível revisão da posição da homeopatia como especialidade médica no Brasil é um sinal de que este trabalho está sendo ouvido e entendido pela população, sociedade e governos no país.
Possível revisão se segue a campanha de esclarecimento da presidente do IQC e do instituto sobre ausência de evidências de eficácia da prática
A homeopatia pode perder o reconhecimento como especialidade médica no Brasil, que goza desde 1980. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o 1ᵒ vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Jeancarlo Cavalcante, informou que vai levar o assunto para análise da Comissão Mista de Especialidades, formada pelo CFM, Associação Médica Brasileira (AMB) e pelos ministérios da Saúde e da Educação, que desde 2015 é responsável por este tipo de decisão. A iniciativa se segue a campanhas de esclarecimento promovidas pelo Instituto Questão de Ciência (IQC) e sua presidente, Natalia Pasternak, sobre a ausência de evidências científicas de qualidade sobre a eficácia da prática, criada pelo médico alemão Samuel Hahnemann no fim do século 18.
“O CFM reconhece essa especialidade, porém, como órgão regulador, está aberto para novas discussões. Caso as evidências sejam questionadas, nada impede uma nova análise. […] Eu vou pedir para minha equipe coletar essas evidências (sobre a ineficácia da homeopatia) e vou levar à apreciação dos conselheiros”, disse Cavalcante ao Estadão.
Pasternak critica o status da homeopatia como especialidade médica no Brasil – um dos poucos países no mundo a assumir esta posição – desde antes da fundação do IQC, em 2018. Na época, ela assinou com Edzard Ernst, pesquisador alemão de práticas da chamada “medicina alternativa” de renome internacional, artigo de opinião do jornal Folha de S.Paulo em que chamava atenção para o caráter implausível dos princípios da prática, como a diluição sucessiva das substâncias com as quais se propõe tratar os pacientes, à luz da ciência moderna.
“Uma diluição homeopática muito comum é a ‘C30’, o que significa uma sequência de 30 diluições consecutivas, à taxa de uma parte de princípio ativo para 100 partes de solvente. Isso significa que uma gota do material original é dissolvida em 1 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 gotas de diluente (água, por exemplo). Isso equivale a menos de uma molécula da substância original em meio a todas as moléculas do Universo”, escreveu a dupla.
Assim, no final de 2019, um ano depois de sua criação, o IQC lançou a Campanha 10^23 com o objetivo de esclarecer e sensibilizar a opinião pública sobre a ineficácia da homeopatia. O termo 10^23 é uma referência ao número de Avogadro, representando o grau de diluição a partir do qual não se encontra mais nenhuma molécula do suposto princípio ativo no produto final. Pouco depois, porém, Pasternak e o instituto tiveram que redirecionar seus esforços para a luta contra a desinformação na pandemia de COVID-19, deixando a campanha em segundo plano.
Isso não quer dizer, no entanto, que a luta foi abandonada. Ainda em 2020, o IQC celebrou seus dois anos com o lançamento de um “contra-dossiê” sobre a homeopatia, resposta ao “Dossiê Especial: Evidências Científicas em Homeopatia”, elaborado pela Câmara Técnica de Homeopatia do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e publicado em 2017 como edição especial da revista da Associação Paulista de Homeopatia (APH). Organizado pelos colaboradores do instituto Luiz Gustavo de Almeida, doutor em microbiologia e diretor de educação científica do IQC, e o jornalista científico Cesar Baima, o contra-dossiê traz textos de especialistas que analisam, comentam e refutam os principais artigos do “Dossiê Especial” da câmara técnica do Cremesp que supostamente apoiariam cientificamente a prática da homeopatia.
Um ano depois, com o avanço da vacinação e o arrefecimento da pandemia, em novembro de 2021 o IQC retomou a Campanha 10^23 sob o slogan “Homeopatia é feita de nada”. Reforçado pelas lições aprendidas como uma das principais lideranças no combate ao negacionismo e a desinformação durante a crise da COVID-19, inclusive com a participação de Pasternak na CPI da Pandemia, o instituto voltou a focar em um dos seus principais objetivos, a defesa de políticas públicas baseadas em evidências.
Como lembraram Marcelo Yamashita, diretor científico do IQC, e Carlos Orsi, seu diretor de comunicação, no texto de anúncio de relançamento da iniciativa, “nenhuma ideia, por mais errada que seja, realmente ‘morre’ enquanto existir uma comunidade investida em mantê-la em circulação”, o que “não é, claro, uma propriedade exclusiva da homeopatia: astrologia, reiki, aromaterapia, exemplos outros não faltam”. Segundo eles, a pandemia mostrou que “não é pequena a legião de defensores da ciência”, mas também deixou no ar “o quanto desse consenso em torno do valor intrínseco da evidência empírica e do método científico se manterá quando for a hora de apontar as inadequações de práticas e doutrinas de longa tradição”.
Problema que ficou claro na resposta do Ministério da Saúde aos questionamentos do Estadão sobre seu posicionamento quanto à falta de evidências científicas de eficácia da homeopatia, dado que ela é oferecida no Sistema Único de Saúde (SUS) como parte da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC). Instituída em 2006, a PNPIC incorporou 29 destas práticas pseudocientíficas no sistema saúde com atendimentos pagos com recursos públicos, incluindo, além da homeopatia, abordagens como naturopatia, quiropraxia e ozonioterapia que não só carecem de evidências de eficácia como podem ser perigosas para os pacientes.
“A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC) está em processo de discussão e ampliação de oferta de serviços a partir das melhores evidências científicas e do objetivo terapêutico”, respondeu o ministério em nota ao Estadão, acrescentando que a atual gestão da pasta “valoriza a ciência sem deslegitimar os saberes tradicionais – especialmente dos povos que vivem no Brasil, como indígenas e quilombolas – que também devem ser valorizados”.
Acontece que esta argumentação, além de falaciosa na teoria, é falsa na prática: a homeopatia, como vimos, é de origem alemã; terapias florais (também conhecidas como “florais de Bach”) são inglesas; reiki é japonês; e a quiropraxia uma ideia ruim made in USA, inventada por Daniel David (D.D.) Palmer, um charlatão canadense radicado nos EUA, no fim do século 19. Das 29 práticas da PNPIC, apenas uma pode vir a incluir os tais “saberes tradicionais” dos povos brasileiros, e mesmo assim de maneira tangencial: a fitoterapia, com seu uso de plantas medicinais.
Tampouco estas práticas são tão “tradicionais” e antigas assim. Mais uma vez, boa parte foi criada do século 19 para cá, sendo ou relíquias de uma era pré-científica, como a homeopatia, ou desenvolvimentos mais recentes – lista que vai da aromaterapia ao termalismo – que buscam se apropriar dos benefícios inespecíficos da atenção à saúde, como o conhecido “efeito placebo”. Mesmo a chamada “Medicina Tradicional Chinesa” não é exatamente “tradicional”, mas uma criação do líder comunista Mao Zedong, que juntou todos os tratamentos históricos da China sob esse guarda-chuva e inventou os “médicos de pés descalços” para praticar a MTC não porque acreditasse nela, mas porque havia uma escassez desesperadora de médicos de verdade na China, e o país precisava pelo menos aparentar ter um sistema de saúde.
Ao longo dos seus agora quase 5 anos de existência, o IQC tem buscado ser uma fonte de informações confiáveis em saúde e outros temas relevantes da atualidade, como as mudanças climáticas, em um ambiente social de crescente ruído e desinformação. Neste meio tempo, a Revista Questão de Ciência, publicação digital do instituto, produziu dezenas de artigos e textos sobre as práticas da PNPIC e outras iniciativas pseudocientíficas ou questionáveis. A possível revisão da posição da homeopatia como especialidade médica no Brasil é um sinal de que este trabalho está sendo ouvido e entendido pela população, sociedade e governos no país.
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