IQC celebra dois anos com lançamento de “contra-dossiê” sobre homeopatia

Evento comemorativo virtual destaca atuação do instituto na luta contra a “infodemia” na COVID-19 e crescimento de audiência de canais em que oferece informação científica de qualidade para o público

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O Instituto Questão de Ciência (IQC) celebrou dois anos de fundação no último fim de semana com o lançamento de um “contra-dossiê” sobre a homeopatia, acompanhado de um evento virtual que também destacou a atuação na luta contra a desinformação na pandemia de COVID-19 e o crescimento da audiência de suas páginas na internet e redes sociais, entre eles sua principal publicação, a Revista Questão de Ciência.

Abrindo a live transmitida pelo canal do IQC no YouTube e página no Facebook, o jornalista Carlos Orsi, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e um dos fundadores do instituto, elencou algumas das realizações no último ano. Impulsionada pelo compromisso do instituto em levar informação científica de qualidade e acessível à população, a presidente do IQC, a microbiologista Natalia Pasternak, contabilizou mais de 700 aparições em grandes veículos de mídia do Brasil, entre entrevistas para TVs, rádios, jornais e sites, em meio à maior crise de saúde pública do mundo em mais um século.

Enquanto isso, os jornalistas, cientistas e pesquisadores colaboradores da Revista Questão de Ciência produziram quase 300 textos e artigos, numa média de mais de 5 por semana, que atraíram mais de 1,1 milhão de leitores, num crescimento de mais de 300% frente ao primeiro ano de existência da publicação, e de mais de 10.000.000% frente a estreia.

“A maior parte deste crescimento deve-se, obviamente, à pandemia”, comentou Orsi. “Quando planejamos o instituto, imaginamos que íamos participar de um pequeno nicho na verdade, alertando as pessoas para a ineficácia de horóscopo, os problemas da homeopatia e coisas assim. Seria uma batalha constante, mas de baixa intensidade, quase uma guerra de guerrilha. Mas dois eventos, o surgimento da COVID-19 e a chegada ao poder de uma forma extrema de negacionismo científico e de pensamento conspiratório, fizeram com que nosso nicho de repente explodisse. De repente nosso pequeno nicho de propagação de pensamento crítico abraçou o mundo. Então a gente respirou fundo e reagiu de acordo”.

O esforço do IQC e de Pasternak para lutar contra a desinformação na pandemia que ameaçou e ainda ameaça a vida da população, felizmente, não passou desapercebido. Em outubro, a presidente do IQC foi convidada a participar do Comitê para Investigação Cética dos EUA (Committee for Skeptical Inquiry, ou CSI, na sigla em inglês), tornando-se a primeira brasileira a integrar este prestigiado grupo, fundado pelo astrofísico e divulgador científico americano Carl Sagan em 1976 e que tem entre seus membros hoje nomes como Richard Dawkins e Neil deGrasse Tyson. Pasternak também recebeu o prêmio internacional Navalha de Ockham, oferecido pela revista britânica The Skeptic, uma das principais publicações no movimento cético do planeta, em reconhecimento pelo seu trabalho de promoção do ceticismo e do pensamento crítico no Brasil.

A seguir, o jornalista Fábio Pannunzio apresentou o lançamento do “Contra-dossiê de Evidências da Homeopatia” na companhia de Pasternak e do físico Marcelo Yamashita, diretor científico do IQC. Em formato de entrevista e aberto à interação com o público, o lançamento deu espaço a discussões que foram das fontes de financiamento do instituto e sua atuação à validade da ciência como base para a produção de conhecimento e embasamento para políticas públicas, passando pela história, características, métodos e práticas da homeopatia.

Resposta ao “Dossiê Especial: Evidências Científicas em Homeopatia” – elaborado pela Câmara Técnica de Homeopatia do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e publicado em 2017 como edição especial da revista da Associação Paulista de Homeopatia (APH) -, o “Contra-dossiê de Evidências da Homeopatia” foi organizado pelos colaboradores do IQC Luiz Gustavo de Almeida, doutor em microbiologia e pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, e o jornalista científico Cesar Baima.

Nele, especialistas como Beny Spira, professor de Microbiologia da USP; o médico Eder Carlos Rocha Quintão, professor emérito da Faculdade de Medicina da USP; o médico e pesquisador Edzard Ernst, professor emérito da Escola de Medicina da Universidade de Exeter, Reino Unido; George Emanuel Avraam Matsas, professor do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (Unesp); e Leandro Russovski Tessler, professor do Instituto de Física da Unicamp – além dos já citados Carlos Orsi, Luiz Gustavo de Almeida, Marcelo Yamashita e Natalia Pasternak – analisam, comentam e refutam os principais artigos do “Dossiê Especial” da câmara técnica do Cremesp que supostamente apoiariam cientificamente a prática da homeopatia de acordo.

E assim, o que Pannunzio, atuando como “advogado do diabo”, prometeu ser um “massacre” de perguntas duras e difíceis sobre o IQC acabou se mostrando mais uma “surra” nas alegações da homeopatia. Às falsas acusações de que o instituto combate esta prática e outras da chamada “medicina alternativa” por ser financiado pela indústria farmacêutica, Pasternak lembrou que o IQC funciona com doações apenas de pessoas físicas, e seu estatuto proíbe o recebimento de doações de empresas, bem como de pessoas ligadas a empresas de áreas relacionadas ao seu campo de atuação, que inclui políticas públicas para a saúde.

“Então o instituto não recebe nem poderia receber (financiamento da indústria farmacêutica)”, resumiu.

Já com relação à homeopatia, a afirmação central do contra-dossiê de que ela não funciona e não pode funcionar foi demonstrada em várias instâncias da conversa. Com relação ao efeito placebo, por exemplo, Pasternak explicou que ele é sim real, e por isso fonte de boa parte dos “benefícios” à saúde, como redução de sensação de dor e outros alívios de sofrimento, que a prática alternativa se apropria como dela.

“O efeito placebo é real, pode ser medido e tem gradações. Duas pílulas de açúcar funcionam melhor que uma. Pílulas coloridas funcionam melhor que brancas. Injeções funcionam melhor que pílulas. Quanto mais ritualístico for, melhor o efeito placebo”, destacou Pasternak. “A pessoa se sente cuidada, se sente acolhida, amparada. Uma consulta com um médico homeopata costuma durar uma hora. Ele te ouve. Ele te dá atenção, ele te trata com compaixão, com carinho. E este carinho, esta atenção, gera um efeito placebo que traz uma melhora do paciente. Então, quando a gente diz que (a homeopatia) não funciona, é que não funciona além de um placebo”.

Tal capacidade, no entanto, pode se mostrar potencialmente perigosa para o paciente, que assim acaba adiando a busca por um tratamento efetivo de uma possível condição grave até que seja tarde demais para uma intervenção eficaz.

“O placebo não vai fazer um tumor diminuir de tamanho, mas pode diminuir o desconforto e a dor a tal ponto que você deixa de buscar um tratamento adequado. Enquanto isso, este tumor continua crescendo até chegar o momento que fica tarde demais para intervir. Este é o perigo do placebo”, complementou a presidente do IQC.

Mesmo assim, Pasternak ressaltou que o instituto não busca o banimento da homeopatia ou de qualquer outra prática de medicina alternativa sem comprovação científica. Mas, como uma organização que advoga que políticas públicas sejam baseadas em evidências, o IQC defende que a homeopatia e outras das chamadas Práticas Integrativas Complementares em Saúde (PICS) – como Reiki, Florais de Bach, cromoterapia, aromaterapia, imposição de mãos, numa lista de quase 30 delas – deixem de ser oferecidas e bancadas com o dinheiro público no Sistema Único de Saúde.

“Quando você coloca isso (as PICS) como uma prática para ser oferecida pelo SUS, isso é pago com o dinheiro dos impostos. Mas o dinheiro é limitado, os recursos públicos não são infinitos. Então precisam ser usados da forma mais racional o possível. E usá-los com práticas que não têm comprovação científica, que nós sabemos que não funcionam, não é um uso mais racional”, argumentou a presidente do IQC. “Quando a gente fala de políticas públicas, a gente está falando de algo coletivo, algo que vai beneficiar a saúde da população como um todo. Por isso que países como a Austrália, Reino Unido e França já baniram a homeopatia das suas redes públicas de saúde. Ninguém está entrando na casa das pessoas para dizer o que tem ou vai fazer. Ninguém vai mexer em liberdades individuais, não se trata disso. Se trata de um uso racional de recursos públicos que são limitados. O que nós queremos aqui no IQC é que o Brasil não siga na contramão do resto do mundo, mas o exemplo dos países desenvolvidos e do consenso científico que existe, de que a homeopatia não funciona como prática médica, e que retire a homeopatia da rede pública de saúde. Na vida particular, cada um faz o que quiser”.

Neste sentido, uma das batalhas do IQC é descobrir quanto os governos gastam com estas práticas alternativas. O problema é que nem a grande maioria deles sabe. Como o orçamento para elas está incluído nos recursos repassados aos municípios pelo Ministério da Saúde para programas de Atenção Básica em Saúde, é difícil separar quanto está sendo gasto com quê. Após uma série de pedidos dos números às capitais de todos estados brasileiros com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), apenas uma Vitória, no Espírito Santo, tinha e enviou um orçamento detalhado de quanto gastou com PICS. Segundo a Prefeitura de Vitória, o gasto anual com PICS é da ordem de R$ 1,5 milhão anuais, o que, dividindo por uma população estimada em cerca de 360 mil habitantes, dá aproximadamente R$ 4,20 por pessoa.

“Parece pouco, só que uma dose de vacina de febre amarela custa R$ 3,50. Então, pelo gasto de PICS em Vitória, eles poderiam vacinar a população inteirinha para febre amarela, por exemplo”, destacou Pasternak.

Já Yamashita foi questionado por Pannunzio sobre os métodos de produção dos preparados homeopáticos e sua suposta ação no organismo. O diretor científico do IQC, também diretor e professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp, explicou que a prática é baseada em um conceito criado pelo médico alemão Samuel Hahnemann entre o fim do século 18 e início do 19 segundo o qual uma substância capaz de provocar os mesmos sintomas de uma doença é capaz de curar ela, ou “semelhante cura semelhante” (similia similibus curentur, em latim). Para isso, no entanto, a homeopatia promove uma ultradiluição das substâncias a serem usadas, de tal ordem que, ao final, resta apenas o solvente no preparado, em geral água, sem qualquer sinal do suposto “princípio ativo”.

“Então, se não existe princípio ativo, tenho que inventar alguma coisa: é a ‘memória da água’. Mas nada disso é real nem na física nem na química. Seria um efeito sem causa”, esclareceu. “Não tem que gastar tempo, dinheiro e recursos públicos para promover uma prática que a gente sabe que não funciona. Qualquer coisa gasta acima de zero é muito para uma prática que não tem eficácia, que se sabe não tem nenhum embasamento teórico e não tem nenhum embasamento de experimentos que corrobore que funcione melhor que um placebo”.

Ao que Pasternak reforçou:

“O IQC foi criado para garantir que a informação baseada em ciência circule. A gente não está aqui para coagir ninguém, para forçar ninguém, para impor nada a ninguém. A gente está aqui para fornecer gratuitamente informação baseada em ciência para quem tiver interesse. Muitas vezes, as pessoas que usam estas práticas alternativas não têm acesso à informação. Elas nem sabem. Usam porque acham que a homeopatia é remédio ‘natural’, que é feito com planta. Confundem com fitoterapia, que são remédios a base de plantas. Muita gente nem sabe exatamente o que está usando e este é nosso papel: esclarecer. Foi o que a gente fez no contradossiê. Nele a gente explica o que é, como surgiu a homeopatia, como não tem plausibilidade biológica, e como isso foi testado e reprovado pela ciência”.

Logo depois foi a vez de o jornalista científico Herton Escobar conversar com Paulo Almeida, diretor executivo do IQC, sobre o funcionamento do instituto e sua atuação. Almeida reforçou a independência do IQC de interesses financeiros e políticos, além de contar com conselhos consultivo e fiscal que fiscalizam externamente a execução orçamento e sua vinculação à missão de defesa de políticas públicas baseadas em evidências científicas.

“É uma estrutura de governança que garante que o IQC não esteja fazendo bobagem, não esteja fazendo nada ilegal, e não esteja fazendo nada diferente do que a gente prega publicamente”, afirmou.

Bacharel e mestre em Psicologia pela USP, e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Franca, Almeida também comentou sobre os caminhos conceituais, argumentativos e legais que o IQC pretende usar para que a ciência passe a pautar as políticas públicas, em especial as relacionadas à saúde. Para tanto, contou, o instituto busca manter diálogos abertos com instituições públicas de ensino superior, legisladores de várias esferas e organizações de classe de forma a, num trabalho paciente de convencimento, mudar a forma como terapias pseudocientíficas como a homeopatia são ensinadas, tratadas e apoiadas no país, principalmente diante do recente avanço de correntes de pensamento negacionistas, obscurantistas e pseudocientíficas em diversas esferas de governos e na própria sociedade brasileira.

“O diagnóstico é que as coisas não estão melhorando. Temos tempos bem complicados pela frente. E aí o nosso trabalho continua sendo muito importante de pautar políticas públicas e ter diálogos abertos com todas as instâncias de tomada de decisão”, avaliou. “Mas também cada vez mais trabalhar em educação e letramento científico, em tentar levar para a população capacidade de senso crítico para conseguir escapar desta furada que a gente está se metendo, na esperança disso melhorar. É esperar o melhor e se preparar para o pior, é o que dá para fazer neste momento difícil. Agregar pessoas e trazer cada vez mais para o nosso lado pessoas que tenham interesse em tomar decisões baseadas em razão, baseadas em evidências. E se afastar um pouquinho do dogmatismo que anda dominando todo mundo e acho que é a coisa mais anticientífica que pode existir”.

Fechando a live, a presidente do IQC, Natalia Pasternak, destacou a importância da comunicação e divulgação científica de qualidade e acessível, principalmente nestes tempos de pandemia.

“O Instituto Questão de Ciência foi criado com uma missão social, de proteger a saúde e o bolso do cidadão brasileiro, de proteger a saúde pública e o bolso coletivo do país, para que todo mundo saia ganhando com técnicas não só em saúde, mas também em outras áreas de conhecimento, que sejam baseadas em ciência, e não em achismos, não em ideologias políticas”, disse. “Acho que a pandemia trouxe o IQC para um patamar onde de repente não só nós, mas toda a sociedade percebeu como saber ciência é tão importante quanto desenvolver a ciência, e que se a gente não souber comunicar a ciência, pessoas morrem. Cada pessoa que gente conseguiu esclarecer sobre curas milagrosas, cada pessoa que gente conseguiu esclarecer sobre uso de máscara, sobre a importância de evitar aglomerações, sobre a importância deste distanciamento físico e social, todo este trabalho de esclarecimento e orientação para a população, eu não tenho dúvidas de que este trabalho salvou vidas. E de que este trabalho criou multiplicadores destas mensagens, e criou pessoas que também salvaram vidas”.

Quanto ao futuro do IQC, Pasternak anunciou o lançamento de iniciativas como a realização em março próximo de um congresso virtual de pensamento científico em parceria com o Aspen Institute, sediado em Nova York; receber o Congresso Mundial Cético em 2022; dar seguimento ao braço de educação do IQC, comandado por Luiz Gustavo Almeida, com a montagem e oferecimento de cursos e workshops para professores de ciência do ensino fundamental e médio da rede pública; fomentar a pesquisa científica no país com a oferta já a partir de 2021 de seis bolsas anuais para estudantes de mestrado em parceria com a ONG americana Dimensions Sciences; e o lançamento da coleção de pocketbooks “Que Bobagem!”, que vai levar com uma linguagem simples e acessível para o público informações sobre pseudociências que permeiam o imaginário popular como astrologia, medicina alternativa e ufologia.

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