“Ciência, a Fronteira sem Fim”: o histórico documento que serve de base para políticas públicas em ciência e tecnologia

Escrito em 1945 pelo engenheiro elétrico e pesquisador Vannevar Bush, o relatório destacava a importância do investimento público em pesquisa científica para o progresso social

O entendimento de que a ciência é fundamental para o progresso social, tão desafiado pelo negacionismo científico que ganha força ao redor do mundo, tem como principal marco um documento escrito há quase oito décadas, cujas diretrizes se mantém atuais e repercutem em políticas públicas de diversos países até hoje. Intitulado Science: The Endless Frontier (Ciência, a Fronteira sem Fim, em tradução livre), o relatório, originalmente publicado em 1945, foi encomendado pelo então presidente americano Franklin Roosevelt a seu braço direito em assuntos científicos: o engenheiro elétrico Vannevar Bush (1890-1974), pioneiro da computação e pesquisador do Massachusetts Institute of Technology (MIT).

O cientista por trás do documento

Nascido em 1980 em Everett, Massachusetts (EUA), Bush foi um cientista e administrador que, desde muito cedo, ficou conhecido pelas suas importantes contribuições no desenvolvimento da ciência e tecnologia nos Estados Unidos. Graduado em engenharia elétrica pelo Tufts College, ele trabalhou em pesquisa e desenvolvimento para o exército americano durante a Primeira Guerra Mundial, mas, após o fim do conflito, começou uma extensa e reconhecida carreira como professor e pesquisador no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Durante os anos em que atuou na academia, Bush contribuiu com o desenvolvimento de sistemas de computação analógicos e digitais, e ganhou notoriedade por ter proposto um dispositivo chamado Memex. Em um ensaio intitulado “As We May Think”, em que identificava a “explosão de informação” como um problema crítico, o pesquisador apontava o dispositivo como uma solução.

O Memex era uma espécie de “máquina de memória” que Bush imaginou para armazenar e recuperar informações pessoais, com a capacidade de criar associações entre diferentes ideias e conceitos. Ao longo dos anos, o cientista, que iniciou a carreira como professor assistente de engenharia elétrica, foi ocupando posições cada vez mais altas no MIT, contribuindo para a criação de vários programas de pós-graduação, incluindo o Departamento de Ciência da Computação e Inteligência Artificial.

Pela relação próxima que sempre conservou com o governo americano, ele foi convidado, em 1938, a presidir o Carnegie Institution of Washington (CIW), uma instituição criada para apoiar a investigação científica nos EUA. Já no ano seguinte, foi nomeado diretor da recém-criada Fundação Nacional de Ciência por Roosevelt, cargo que ocupou até 1941, quando se tornou diretor do Escritório de Pesquisa e Desenvolvimento Científico dos Estados Unidos (OSRD), que foi estabelecido para coordenar a pesquisa científica e tecnológica que estava sendo conduzida por várias agências governamentais e acadêmicas durante a Segunda Guerra Mundial. Como diretor do OSRD, Bush informava regularmente o presidente sobre  o progresso da pesquisa científica e tecnológica relacionada à guerra, que incluiu o desenvolvimento da bomba atômica e do radar. Ele também defendia a importância da ciência para a segurança nacional, e alertava as autoridades sobre o papel do governo no financiamento e promoção da pesquisa científica. Por isso, foi convidado por Rossevelt a escrever o histórico documento que marcou o início da política científica moderna.

Um contexto favorável

À época, a Segunda Guerra Mundial se encaminhava para o fim e os Estados Unidos viviam um momento de transição do período da Grande Depressão, em que o país viveu a maior crise financeira de sua história, para a vitória no conflito mundial. Apesar do grande avanço científico e tecnológico dos anos de guerra, Roosevelt revelava preocupações sobre a necessidade de se organizar um sistema de ciência e tecnologia mais moderno e estruturado do que aquele que havia no país antes do início do conflito. Por isso, encomendou a Bush um documento que respondesse as seguintes perguntas: (1) O que pode ser feito, respeitada a segurança militar e com a aprovação prévia das autoridades militares, para anunciar ao mundo, tão logo seja possível, as contribuições ao conhecimento científico feitas durante nosso esforço de guerra? (2) Com referência à guerra da ciência contra as doenças em particular, o que pode ser feito neste momento para organizar um programa que dê continuidade no futuro ao trabalho feito em medicina e nas ciências relacionadas? (3) O que o governo pode fazer, agora e no futuro, para ajudar as atividades de pesquisa de organizações públicas e privadas? (4) É possível propor um programa eficaz para a descoberta e o desenvolvimento de talentos científicos na juventude americana, para que o futuro da pesquisa científica neste país fique assegurado num nível comparável ao dos tempos de guerra?

         Apesar de a encomenda ter sido feita por Roosevelt, foi o seu sucessor, Harry Truman, quem recebeu o relatório das mãos de Vannevar Bush. A entrega foi feita oito meses após a solicitação, e ocorreu duas semanas depois da explosão da bomba de Hiroshima e quatro meses após a morte de Roosevelt. No documento, que contou com o trabalho de comissões para sua elaboração, há uma defesa sobre o papel da ciência para o progresso, a guerra contra doenças e a segurança nacional, além de um claro posicionamento pela superioridade da ciência moderna frente a outras formas de conhecimento. “A ciência é eficaz para o bem-estar nacional somente se for parte de um todo, sejam as condições de paz ou de guerra. Mas sem progresso científico nada que for conquistado em outras direções poderá assegurar nossa saúde, prosperidade e segurança como nação no mundo moderno”, diz a parte introdutória do documento.

         O relatório defendia a ideia de que a ciência básica e aplicada eram fundamentais para o avanço da sociedade, e que o governo deveria investir significativamente em pesquisa científica sem interferência política, garantindo assim a liberdade acadêmica e a independência da pesquisa. No documento, Bush propôs uma organização do sistema de pesquisa norte-americano com quatro atores fundamentais: indústrias, universidades,  laboratórios  governamentais e o  governo como planejador  e  financiador de partes do sistema, garantindo sempre que “a liberdade  de  pesquisa  deve  ser  preservada”. Defensor de uma maior cooperação entre cientistas de diferentes disciplinas, o autor do documento enfatizava ainda a importância de uma educação científica de alta qualidade, com investimento em treinamento e desenvolvimento de jovens cientistas.

As quatro principais recomendações do documento, que influenciam ainda hoje políticas públicas de ciência e tecnologia em diversos países, foram: (1) a criação de uma agência federal independente para financiar a pesquisa científica, que nos Estados Unidos foi chamada National Science Foundation (NSF) e é, até hoje, uma das principais fontes de financiamento para a pesquisa científica nos Estados Unidos; (2) o investimento em pesquisa científica para promover o progresso científico e tecnológico e garantir a segurança nacional e a melhoria da vida cotidiana das pessoas; (3) o fomento à colaboração entre cientistas, independentemente das fronteiras nacionais ou institucionais; (4) e o incentivo à pesquisa científica de base, que apesar de ser uma atividade incerta, é  “essencial para o avanço do conhecimento e da tecnologia, e deveria ser financiada pelo governo”. “A pesquisa básica leva a novos conhecimentos. Fornece capital científico. Cria a base de onde as aplicações práticas do conhecimento devem ser extraídas. Novos produtos e novos processos não aparecem prontos. Eles são baseados em novos princípios e novas concepções, que, por sua vez, são meticulosamente desenvolvidos por pesquisas nos mais puros domínios da ciência. Hoje, é mais verdadeiro do que nunca que a pesquisa básica é o marcapasso do progresso tecnológico”, diz o documento.

Investimento em Pesquisa e Desenvolvimento nos EUA

Nos anos seguintes à publicação do relatório, o sistema de educação superior público dos EUA se expandiu de forma significativa, com o financiamento federal para pesquisa e desenvolvimento passando de US$4,6 bilhões em 1953 para US$18,1 bilhões em 1968, e o número de alunos matriculados em cursos de graduação passando de 2 milhões em 1950 para 9 milhões em 1970. Além disso, diversos países utilizaram as diretrizes do documento para implementar políticas públicas de fomento à ciência em seus governos, entre eles o Brasil, com a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 1951, seguida pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CENEN), em 1956.

A influência do relatório em tantos países se deveu, em parte, em decorrência da situação política e econômica dos EUA no pós-guerra, período em que o mundo testemunhava a importância da tecnologia baseada na ciência para o desfecho dos conflitos. O desenvolvimento da bomba atômica, do radar e da penicilina, entre outros, fez com que a declaração de Bush encontrasse um público receptivo. O engenheiro também adotou uma linguagem inovadora que capitalizou essa recém-experimentada credulidade no governo.

Críticas ao modelo linear

Embora o documento “Science, The Endless Frontier” tenha sido uma das peças fundamentais para a criação do sistema de financiamento federal da pesquisa científica nos Estados Unidos e em diversos países, ele também recebeu críticas por sua abordagem linear do processo de inovação e desenvolvimento científico. Por ser um defensor da pesquisa de base, Bush argumentava que o sucesso do desenvolvimento científico e tecnológico se daria a partir de um Modelo Institucional Ofertista Linear, onde a pesquisa científica básica era vista como o ponto de partida para a inovação e o desenvolvimento tecnológico. O modelo descreve que o desenvolvimento social seria baseado em um processo sequencial-linear, que inicia com a pesquisa científica, passando pelo desenvolvimento tecnológico, que levaria à inovação, e que traria, por consequência, o desenvolvimento econômico e, como decorrência “natural”, o desenvolvimento social. 

No entanto, com o passar das décadas, muitos pensadores passaram a argumentar que o processo de inovação e desenvolvimento científico não é linear pois deve considerar outras questões importantes e pode ser influenciado por fatores complexos, incluindo políticas governamentais, economia, cultura, distribuição desigual de recursos, entre outros. Entre os grupos que mais fortemente criticaram o modelo proposto por Bush está o Pensamento Latino-americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade (PLACTS), que nas décadas de 1960 e 1970 passou a refutar a visão otimista-idealista, que considera a ciência como inerentemente positiva, e a defender que os países periféricos precisavam de uma política pública adequada às suas necessidades, e não uma agenda pensada pela cultura científica dominante dos centros mundiais.

Outro traço marcante do documento, a ênfase dada ao papel do Estado na promoção do avanço da ciência, também foi por muito tempo alvo de críticas de segmentos sociais mais conservadores, que temiam um avanço ainda maior da esfera de atuação do Estado norte-americano, que já havia passado por uma significativa expansão ao longo da Segunda Guerra Mundial. Havia ainda uma outra fonte de resistência, proveniente da burocracia, que temia que seus interesses já consolidados pudessem ser afetados pelas mudanças propostas por Bush, especialmente diante de uma suposta tecnocracia exacerbada ou mesmo da criação de uma agência governamental de ciência.

Repercussões atuais

A despeito das críticas, o relatório foi e continua sendo um dos documentos mais importantes para o debate sobre o papel da ciência no desenvolvimento de uma sociedade. Sua relevância é tamanha que, em 2021, o atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, escreveu uma carta ao Dr. Eric S. Lander, seu então Conselheiro Científico e diretor do Office of Science and Technology Policy (OSTP, o antigo OSRD), fazendo referências à publicação de Vannevar Bush e solicitando, nos mesmos moldes do pedido de Rossevelt, uma atualização sobre as principais questões que envolvem o desenvolvimento científico e tecnológico no país a fim de reafirmar a importância da ciência para a sociedade. Nesta carta, assim como o ex-presidente, Biden colocou algumas questões-chave a serem respondidas: (1) O que podemos aprender com a pandemia sobre o que é possível – e deveria ser possível – para atender ao mais amplo espectro de necessidades relacionadas à nossa saúde pública? (2) Como podem descobertas revolucionárias na ciência e tecnologia criar novas soluções para as mudanças climáticas – propelindo mudança dirigidas pelo mercado, reiniciando crescimento econômico, melhorando a saúde e promovendo empregos, especialmente nas comunidades que ficaram para trás? (3) Como podem os EUA garantir sua liderança em tecnologias e indústrias do futuro que serão críticas para nossas prosperidade e segurança nacionais, especialmente na competição com a China? (4) Como garantir que os frutos da ciência e tecnologia serão plenamente distribuídos através da América e entre todos os americanos? (5) Como podemos garantir a saúde de longo prazo da ciência e da tecnologia em nossa nação? Biden concluiu a carta afirmando que acredita “que as respostas a estas questões serão instrumentais em ajudar nossa nação a embarcar em um novo caminho nos próximos anos – um caminho de dignidade e respeito, de prosperidade e segurança, de progresso e de propósito comum.”

Alguns meses depois, em junho de 2021, Dr. Lander enviou uma resposta ao presidente sem detalhar cada um dos questionamentos, mas afirmando que “hoje o futuro da América depende da ciência e da tecnologia como nunca. Temos oportunidades incríveis pela frente, mas também enfrentamos desafios sem precedentes – de pandemias à crise climática e à concorrência internacional nas tecnologias do futuro. As escolhas que fizermos agora determinarão nosso caminho para as gerações vindouras”. O pesquisador destacou o combate às desigualdades como um dos principais desafios contemporâneos a serem transpostos, indicando que “a ciência e a tecnologia muitas vezes têm sido hostis ou inacessíveis para muitos americanos, devido ao seu gênero, raça, recursos ou geografia. Devemos garantir que todos os americanos possam participar plenamente, inclusive tendo voz na definição das prioridades de nossa nação. E devemos garantir que todos os americanos compartilhem igualmente os benefícios da ciência e da tecnologia”.  O Dr. Lander renunciou ao cargo de assessor em fevereiro de 2022 após ser acusado de intimidar funcionários. Até o momento, um relatório final não foi entregue ao presidente. 

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