Precisamos formar mais engenheiros?

Uma análise do que a demanda de mercado X oferta de profissionais formados na última década pode nos ensinar sobre o assunto

Por Franklin Weise

Em 16 de janeiro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursou sobre a necessidade de mais engenheiros e concluiu: “… o Brasil não pode ser o país que mais tem universidade para formar advogado. Nós precisamos formar outras pessoas. Nós precisamos investir mais em engenharia.” Em 6 de dezembro, ele voltaria ao tema: “…é preciso que se forme mais em matemática, engenharia, física, cursos primordiais para o desenvolvimento de uma nação para que a gente possa ser mais competitivo.” 

Em outras palavras, o presidente constatou que a disponibilização de mais engenheiros é considerada condição necessária para (e que antecede) o desenvolvimento econômico do Brasil.

Este discurso está em consonância com o que se falou no início da década de 2010, quando foi cogitado um possível apagão de engenheiros caso a economia permanecesse em expansão. Contudo, já no final da década de 2010, percebeu-se que a dinâmica de oferta e demanda mudara, e muito. Houve uma explosão de oferta, mas a demanda projetada minguou devido à crise econômica. Para jogar alguma luz sobre o tema, o que os dados históricos nos contam? Temos mesmo a necessidade de formar mais engenheiros?

OFERTA DE VAGAS

Comecemos pela oferta de vagas na graduação em engenharias: sempre considerando os dados do Censo da Educação Superior, tivemos um aumento expressivo na primeira metade da década passada, quando o número de vagas mais que duplicou nas faculdades públicas e quase triplicou nas privadas em apenas 5 anos. A partir de 2014, houve duas direções distintas: enquanto as instituições públicas mantiveram um número relativamente estável (cerca de 100 mil vagas), as particulares expandiram sua capacidade, chegando a 816 mil vagas em 2018. O posterior fechamento de vagas ocorreu quase que exclusivamente em cursos mantidos por instituições privadas.

DEMANDA DE VAGAS

E quanto à demanda pelos cursos de engenharia? Nos processos seletivos, a queda no número de inscritos começou em 2016:

Isto teve um reflexo imediato no índice de candidatos por vaga: no sistema privado, já em 2017 havia mais vagas que candidatos – chegando a menos das metades das vagas oferecidas ocupadas por ingressantes em 2021. Já no sistema público, depois de um índice médio de 15 candidatos/vaga em 2012, ele foi caindo gradualmente até chegar a apenas 4 candidatos/vaga em 2021. 

Como esperado, o número de ingressantes – que antes mais que dobrara em 5 anos – também caiu, principalmente na engenharia civil e na engenharia de produção:

EVASÃO, RETENÇÃO E TITULAÇÃO

A taxa de titulação (concluintes/ingressantes considerando uma defasagem de 5 anos) mudou de ~55% em meados da década passada para 39% nas faculdades públicas e apenas 28% nas particulares em anos recentes. 

Podemos inferir que esta queda se deve tanto a uma piora na evasão quanto pela retenção. A retenção é um desafio antigo nas engenharias, uma vez que algumas disciplinas do ciclo básico apresentam altas reprovações, impedindo o progresso e a conclusão nos 5 anos previstos. Isto gera uma pressão econômica sobre o poder público (tanto no que diz respeito ao custeio das instituições estatais quanto ao FIES para as particulares) ou sobre o aluno (quando paga a mensalidade em uma instituição privada com recursos próprios). A respeito do FIES, vale lembrar que as regras para concessão de novos financiamentos se tornaram bem mais rígidas a partir de 2015, diminuindo a quantidade de ingressantes por este sistema a partir de então. O tema da evasão rende um artigo à parte, mas vale ver aqui a Diretora da Escola Politécnica da UFRJ, Cláudia Morgado, discorrendo a respeito deste tema.

CONCLUINTES

O Brasil teve recorde de concluintes de engenharia em 2018, quando mais de 130 mil engenheiros se formaram (lembrando que o Censo lança a conclusão do curso no banco de dados do ano seguinte ao término, logo, esses são os que terminaram seus estudos no meio ou no final de 2017), com uma queda inédita logo depois, que continuou em 2020 e 2021. Tanto nas universidades privadas quanto nas públicas, houve uma queda de cerca de 20% no número de formandos entre 2018 e 2021 – um fato possivelmente inédito.

Na linha do tempo, vemos uma correlação clara com a queda de ingressantes iniciada em 2015, após o recorde de 2014 (quando quase 380 mil novos alunos entraram em cursos de engenharia) – os números começaram a cair em 2019.

QUALIDADE DOS CURSOS

Vale enfatizar um fato comentado de forma qualitativa, mas poucas vezes quantificado: a diferença de qualidade dos cursos de graduação entre instituições privadas e públicas. Como exemplo, na Engenharia Civil, 81% dos 147 cursos mantidos pelo Estado receberam nota 4 ou 5 no Enade 2019. Enquanto isto, apenas 8% dos cursos particulares receberam estas notas. Assim, a grande massa dos concluintes simplesmente não é suficientemente capacitada para cargos de alta complexidade e responsabilidade, o que terá reflexos em sua empregabilidade. Ou, colocando de outra maneira: a maior parte do aumento do número de vagas em cursos de engenharia e do contingente de engenheiros disponíveis não vem ao encontro às necessidades do Brasil.

O FATOR EAD

A modalidade de ensino à distância era praticamente inexistente no início da década passada – mas aumentou muito a sua participação já antes da pandemia. Em 2021 representava perto de metade dos ingressantes nos cursos de engenharia. Se considerarmos apenas a rede particular, 59% dos ingressantes naquele ano o fizeram na modalidade EAD (contra apenas 4% na rede pública). Em alguns anos, veremos a propagação deste índice entre os matriculados e os concluintes. 

INFLUÊNCIA DO MERCADO DE TRABALHO

A proporção de engenheiros trabalhando em atividades não-típicas (cujo vocábulo da CBO correspondente não contenha “engenharia”) é muito maior que aqueles trabalhando em atividades típicas de engenharia. Este ponto é fundamental ao objeto deste artigo, pois quando se fala em aumentar o número de engenheiros, está subentendido que são engenheiros atuando na área, em atividades típicas (CBO relativo à engenharia).

Segundo o Confea, havia 931.838 engenheiros registrados em atividade no Brasil em 2020 – mas sem aumento no número de registrados no CREA em anos recentes, a despeito do grande aumento de formandos na década de 2010. Isto corrobora que houve crescimento na parcela de engenheiros exercendo atividades que não exigem o registro.

As engenharias civil, de produção e mecânica são, por si só, responsáveis por dois terços dos formandos egressos dos cursos de engenharia – e justamente nestas áreas, grandes empregadoras de engenheiros, houve crises significativas em tempos recentes. Isto pode ser bem observado na série histórica de participação da indústria de transformação e na indústria de construção no PIB total. 

Algo não quantificado aqui – e que, portanto, serve apenas como evidência anedótica – é quão pouco frequentes são anúncios de vagas no LinkedIn para engenheiros dos nomes tradicionais da indústria de manufatura. Por outro lado, abundam anúncios focados para engenheiros no setor de serviços (data science e serviços financeiros costumam dar preferência para engenheiros). 

Uma hipótese a ser testada (pois é algo relativamente recente) é o quanto a possibilidade de trabalho não-presencial interfere na decisão por um emprego específico em detrimento de um presencial. Funções típicas da engenharia, quando envolvem produção, exigem trabalho presencial – já boa parte das funções exercidas no setor de serviços permite trabalho remoto.

DEMOGRAFIA

Não menos importante: a transição demográfica. A população de brasileiros em idade universitária (de 17 a 25 anos) caiu de 30,7 milhões em 2010 para 27,3 milhões segundo o Censo 2022 – uma expressiva redução de 11%. É previsível que o tamanho desta faixa etária permaneça em queda, tanto em termos absolutos quanto em termos relativos. Considerando que temos cerca de 9 milhões de matriculados em cursos de ensino superior, um aumento em número absoluto de ingressantes nas engenharias só será possível se (a) houver um interesse relativo maior que em relação a outros cursos (aumento de share) e/ou (b) uma parcela maior da população tiver acesso à universidade. Nenhum dos dois pontos é simples e de fácil solução.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fica evidente que um tema tão complexo e com tantas variáveis não se esgota neste curto artigo – que deve ser visto apenas como uma sugestão de pautas para discussão. Contudo, conseguimos concluir que:

  • Temos um contingente muito maior de engenheiros no mercado de trabalho que no começo da década passada;
  • O contingente, em números absolutos, é mais do que suficiente para atender as necessidades da indústria;
  • No entanto, a maior parte dele é de profissionais graduados em instituições de ensino mal avaliadas – e, cada vez, mais, na modalidade EAD;
  • A parcela de engenheiros trabalhando em atividades não-típicas da engenharia vem aumentando;
  • A procura pelos cursos vem diminuindo – mesmo em faculdades públicas;
  • A engenharia civil foi a que mais cresceu e a que mais caiu em número de concluintes na década passada;
  • Há grande demanda por engenheiros no setor de serviços, com atrativos possivelmente maiores que nas indústrias de transformação e de construção;
  • Tanto a indústria de transformação quanto a de construção tiveram queda na respectiva participação no PIB.

Os pontos acima explicitam o dilema: o governo federal quer fomentar o crescimento econômico via ampliação do número de formandos em engenharia, ao mesmo tempo em que há fatores atuando contra a conclusão do curso entre os matriculados e também contra novos ingressantes na área. 

Logo, o governo federal terá de encontrar formas de equalizar a necessidade de engenheiros versus o volume de engenheiros formados. A considerar a dinâmica ocorrida na década de 2010, a oferta de engenheiros (aqueles dispostos a trabalhar em ocupações típicas da engenharia) só aumentará após um aumento da demanda pelo mercado de trabalho, e não antes.

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