Somente 6% dos municípios brasileiros conseguiram atingir em 2022 a meta de cobertura vacinal para todos os imunizantes recomendados para os dois primeiros anos de vida da criança, segundo cálculo feito por meio da Plataforma VacinaBR com base em dados dos sistemas de informação do Programa Nacional de Imunizações (PNI), do Ministério da Saúde. A plataforma foi desenvolvida pelo Instituto Questão de Ciência em parceria com a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Considerando a cobertura vacinal para 16 doenças, que podem ser prevenidas por meio da vacinação de bebês e crianças com 12 imunizantes, somente 335 das 5.570 cidades do País alcançaram a meta preconizada pelo Ministério da Saúde para todas as patologias em 2022. Essa meta é variável conforme a vacina: para a maioria, o índice almejado é de 95% do público alvo, com exceção das vacinas BCG e Rotavírus, para as quais a meta estabelecida é de 90% da população menor de um ano de idade
Foram consideradas na análise as coberturas do esquema vacinal primário completo dos imunizantes que protegem contra caxumba, coqueluche, difteria, tuberculose (formas graves), hepatite B, poliomielite, sarampo, rubéola, tétano, varicela (catapora), rotavírus, pneumonia (dez sorotipos), meningite C, infecção por Haemophilus influenzae tipo b, hepatite A e febre amarela.
A análise dos dados mostra ainda que mais da metade dos municípios só alcançou a meta para oito doenças ou menos. Foram 3.423 municípios nessa situação – o equivalente a 61,4% do total. Em 287 deles, a gestão municipal alcançou a meta de cobertura para apenas uma das 16 doenças analisadas. E há cenário ainda pior: em 1.029 cidades brasileiras, a meta não foi alcançada para nenhum dos imunizantes analisados.
“A situação é muito preocupante. Pelo menos 70% dos municípios deveriam atingir as metas preconizadas pelo Ministério da Saúde. Com estes baixos índices, corremos o risco de doenças controladas ou eliminadas no País voltarem a circular, podendo deixar sequelas graves, como surdez, cegueira, problemas neurológicos e respiratórios nas nossas crianças e ainda causar mortes por doenças evitáveis por vacinação”, diz a epidemiologista Carla Domingues, doutora em Medicina Tropical e ex-coordenadora do PNI.
De acordo com Juarez Cunha, diretor da SBIm, embora o País sempre tenha tido casos de municípios e Estados que não conseguiram cumprir a meta, o problema piorou a partir de 2016 e se agravou nos anos seguintes. “Essas metas são estabelecidas pelo Ministério da Saúde e não são simplesmente um número, há motivos que justificam a necessidade dessas metas e o principal deles é para termos uma proteção para toda a população, não só para a criança que está sendo vacinada, mas também uma proteção coletiva”, explica.
A proteção coletiva, também conhecida como imunidade de rebanho, acontece quando o número de pessoas com anticorpos para uma determinada doença é tão alto em uma população que, na prática, isso impede que a transmissão ocorra porque o patógeno causador da enfermidade passa a ter dificuldade para encontrar indivíduos suscetíveis e, assim, se disseminar.
Isso é especialmente importante para proteger pessoas que não estão imunes, seja porque não chegaram à idade adequada para tomar determinada vacina (como recém-nascidos) ou porque têm algum problema de saúde que as impede de tomar o imunizante ou de desenvolver a proteção adequada mesmo quando vacinada.
Embora números preliminares de 2023 apontem uma reversão na tendência de queda das coberturas vacinais no País graças a campanhas e ações de fortalecimento da vacinação pela atual gestão do Ministério da Saúde, os dados preocupam porque indicam que municípios que atingem a meta para alguns imunizantes não repetem o mesmo desempenho para outros. Também demonstram a disparidade de resultados entre diferentes municípios.
“Quando a gente vai avaliar por que algumas cidades atingem e outras não as metas, a gente tem que observar todos os determinantes que podem interferir nas coberturas vacinais. Dentre eles, alguns determinantes de conveniência, como o horário de atendimento dos postos de saúde, a capacitação dos profissionais em dar informação, a falta de vacinas. Tudo isso acaba interferindo”, diz Cunha.
Ele destaca que até as mudanças nos sistemas de coleta de dados sobre vacinação podem ter impacto nos números de cobertura que o ministério divulga. “Sistemas de informação com registro individualizado começaram a ser implantados na última década e tem alguns municípios que manifestaram mais dificuldade de implementar esses sistemas. Tudo isso precisa ser avaliado e está sendo revisado pelo ministério, mas, independentemente do motivo, precisamos de dados confiáveis para essas ações de monitoramento”, complementa Cunha.
Ele diz que as ações para recuperar as coberturas vacinais precisam de um “microplanejamento” diante das particularidades de cada localidade. “Você tem que avaliar a situação daquele município, daquela região específica, daquela unidade de saúde porque há casos de municípios com ótimas coberturas vacinais, mas que, dentro dele, há regiões em que a meta não foi atingida. E geralmente são populações mais vulneráveis.”
Domingues, por sua vez, ressalta que, embora o ministério preconize a aplicação concomitante de algumas vacinas infantis, alguns pais e até profissionais de saúde ficam inseguros em aplicar mais de uma dose na mesma ida ao posto. “Alguns pais não querem fazer todas as aplicações definidas por terem medo de possíveis efeitos adversos, por acreditarem que tantas vacinas irão interferir no sistema imunológico da criança ou por ficarem com pena do filho. Dessa forma, acabam escolhendo aplicar somente algumas vacinas e não voltam para completar o esquema vacinal dos seus filhos”, diz a epidemiologista.
“Há profissionais que, por falta de capacitação, se sentem inseguros em aplicá-las na mesma visita, mas é fundamental que, em cada ida ao posto, todas as vacinas sejam aplicadas para garantir a proteção da criança o mais precocemente possível”, completa a ex-coordenadora do PNI.
Para Domingues, manter o calendário de vacinação das crianças atualizado já é complexo pelo número de doses e reforços, por isso os municípios precisam adotar estratégias diferenciadas de acordo com sua realidade para alcançar melhores resultados. “Algumas possibilidades são fazer busca ativa na residência por meio do programa de saúde da família, estender o horário de vacinação, abrir os postos de vacinação nos finais de semana e realizar vacinação nas escolas e creches”, diz ela.
Região Norte teve maior índice de municípios sem alcançar integralmente as metas
A análise dos dados extraídos da Plataforma VacinaBR mostra ainda que, em dez unidades da federação, nenhum município conseguiu alcançar as metas de cobertura vacinal para as 16 doenças imunopreveníveis analisadas. Cinco dessas UFs estão na Região Norte: Acre, Amapá, Amazonas, Pará e Roraima. Completam o grupo Distrito Federal, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte e Sergipe.
Na outra ponta do ranking, com o maior percentual de municípios com as metas atingidas aparecem Mato Grosso (14,9%), Paraná (11,3%) e Minas Gerais (10,8%), o que mostra a desigualdade regional das coberturas vacinais no País.
Os Estados da região Norte concentram regiões com maior vulnerabilidade socioeconômica e falta de infraestrutura do País, fatores que podem dificultar a vacinação junto às questões logísticas – por causa da geografia local e de um número importante de população indígena e ribeirinha, os deslocamentos até o posto de saúde ficam dificultados.
Além disso, alguns Estados da região foram os principais alvos do movimentos antivacina nos últimos anos após relatos de supostos eventos adversos durante a campanha de vacinação contra o HPV no Acre, em 2019.
Embora estudo conduzido pela Universidade de São Paulo (USP) tenha concluído que as adolescentes que manifestaram problemas após tomarem a vacina tenham tido, na verdade, reações psicogênicas, a confiança nos imunizantes caiu no Estado, principalmente após campanhas organizadas de desinformação, algumas inclusive capitaneadas por médicos. Esses desinformadores chegaram a criar uma associação de vítimas das vacinas, cuja sede nacional fica em Rio Branco.
Vacina contra febre amarela tem menor número de cidades com meta alcançada
A análise dos dados mostra também que a vacina contra caxumba, rubéola e sarampo (tríplice viral) foi a que teve o maior número de municípios com meta atingida em 2022: 68,9% das cidades alcançaram o público-alvo preconizado pelo ministério. No outro extremo, a vacina contra a febre amarela foi a que teve o menor número de cidades com a meta alcançada: apenas 16,2%.
O cenário na região Norte e as desigualdades nas coberturas atingidas por tipo de vacina mostram o quão desafiador é enfrentar a queda de adesão aos imunizantes no País dado que o fenômeno não tem uma causa única e passa por dinâmicas diferentes dependendo da localidade. Por isso a Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca que a crescente hesitação vacinal deva ser trabalhada sob a perspectiva dos 3Cs – confiança, conveniência e complacência – essa última relacionada à baixa percepção de risco da população em relação a doenças que já foram controladas ou eliminadas justamente por causa das vacinas.
Como já mencionado pelos especialistas, aumentar a disponibilidade dos imunizantes, capacitar melhor os profissionais de saúde, ampliar as campanhas de informação e educação para a população, combater a desinformação em saúde e melhorar a qualidade dos dados coletados sobre as políticas de vacinação são fundamentais para enfrentar o problema.
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