As razões por trás do sucesso (e do declínio) do PNI
O Brasil é referência internacional em vacinação. Mas a queda nas verbas do SUS, os dados ruins, a complacência da população e a falta de confiança nos imunizantes começam a arrastar nosso cenário epidemiológico de volta para os anos 1970. Como reverter essa tendência?
Publicado em 22/07/2022 - 19h40, última atualização em 29/07/2022 - 15h07
Arte: Daniel Liberatore de Lima
A partir de 1958, a Organização Mundial da Saúde organizou uma campanha mundial de vacinação contra a varíola. Com muito esforço, erradicou-se a doença – no Brasil, em 1971, e lá fora no ano de 1977, com o último caso registrado na Somália. O sucesso motivou atores do setor da saúde a pressionarem o governo brasileiro a expandir as políticas de imunização a outras doenças.
Em 1973, surge o Programa Nacional de Imunizações (PNI), concebido numa parceria entre dois órgãos da época: o Depto. Nacional de Profilaxia e Controle de Doenças, que fazia parte do Ministério da Saúde, e a Central de Medicamentos (CEME), subordinada diretamente à Presidência da República.
A Lei 6.259 de 1975 e o Decreto 78.231 de 1976 deram as bases legais do PNI. E o primeiro calendário de vacinação, em 1977, o ajudou a se consolidar como um dos maiores programas de imunização do mundo. “Nenhum outro país até hoje conhece um programa de vacinação de acesso universal”, diz José Verani, pesquisador titular do Depto. de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Até a criação do PNI, a imunização no Brasil era descoordenada: o governo federal ficava responsável por varíola, tuberculose e febre amarela, mas as secretarias estaduais distribuíam os imunizantes contra poliomielite e sarampo, bem como a vacina tríplice bacteriana (difteria, tétano e coqueluche, também conhecida pela sigla DTP).
Concentrar todas as vacinas sob o mesmo guarda-chuva administrativo permitiu replicar, com outras doenças, a ação bem-sucedida de erradicação da varíola. Com procedimentos padronizados e coordenados, foi possível aumentar as coberturas de (BCG), poliomielite, sarampo e difteria, tétano e coqueluche (DTP).
Alguns números: entre 1990 e 2002, a aplicação de três doses de tríplice bacteriana (DTP) se expandiu de 65% para 93% das crianças menores de um ano – o que derrubou o número de casos das três doenças para menos de 1 a cada 100 mil habitantes (a coqueluche, doença mais comum do trio, contabilizava originalmente 12 casos a cada 100 mil habitantes). O número de ocorrências anuais de tétano neonatal, que beirava os 600 em 1982, caiu para menos de dez em 2003.
Em 1992, a Campanha Nacional de Vacinação contra o Sarampo, realizada entre 25 de abril e 22 de maio, espetou 48 milhões de crianças com idades entre 9 meses e 14 anos. Isso dá 98% do público-alvo planejado, um sucesso que nunca havia sido alcançado (e jamais foi repetido) em qualquer país, desenvolvido ou não. O número de casos da doença caiu de 45.778 em 1990 para 3.234 em 1992. Em 1995, já não havia mais nenhum surto.
A grande história de sucesso do programa – que deu origem a Zé Gotinha, mascote do SUS – foi erradicar o vírus da poliomielite em 1989. A vacinação começou em 1980 e passou a segunda metade da década de 1990 com 100% de cobertura.
Embora o PNI ainda seja bem estruturado e uma referência internacional, nos últimos anos as taxas de imunização vem caindo: nossa cobertura vacinal média caiu de 97%, em 2015, para 75% em 2020. Algumas enfermidades, antes sem casos na população, correm o risco de reaparecer – para não falar nas que já voltaram, como o sarampo, em 2018.
Como o PNI alcançou um sucesso exemplar durante um período tão conturbado da história brasileira – marcado por autoritarismo, inflação e desigualdades socioeconômicas profundas? E por que, após tantos anos de sucesso, ele perde força justamente durante a pior pandemia desde a Gripe Espanhola?
O porquê do sucesso
É surpreendente que o Brasil – um país classificado como parte da semi-periferia global, com dimensões continentais e discrepâncias regionais tão graves – tenha alcançado as maiores taxas de cobertura vacinal do mundo na década de 1990 (e se mantido no topo do ranking até 2016).
A explicação começa na logística da fabricação das vacinas. Por um lado, é fato que nós ainda somos dependentes da importação de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) – a parte da fórmula que é responsável por estimular o sistema imunológico. No caso das vacinas de 1ª geração, trata-se do vírus ou bactéria morto ou enfraquecido. Nas de 2ª geração, um fragmento do micróbio. Contra a covid-19, entraram em ação as primeiras vacinas de 3ª geração, baseadas em moléculas de RNA.
90% dos IFAs usados por vacinas e medicamentos brasileiros vêm da China e da Índia. Só 5% são de origem nacional. O trunfo do PNI para contornar esse problema são os contratos de transferência de tecnologia – em que as empresas estrangeiras nos cedem as instruções para transformar o IFA na forma final da vacina (ou até, dependendo do contrato, o know how para fabricar o próprio IFA aqui, algo que aconteceu com as vacinas da AstraZeneca contra o coronavírus).
Desse modo, não há necessidade de importar o imunizante finalizado, o que facilita muito o armazenamento e distribuição, e garante um fluxo estável de fornecimento. Isso também ajudou a tornar nosso programa complexo e completo, com vinte tipos diferentes de vacinas disponíveis no calendário nacional.
É claro que, se dominar a tecnologia por trás da fabricação bastasse, os países desenvolvidos estariam na nossa frente na corrida da cobertura vacinal. Porém, outro fator importante é a nossa logística. Ana Paula Sato, professora do Depto. de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, destaca que a estrutura descentralizada do PNI foi importante para adaptar os esforços de vacinação a cada uma das várias realidades brasileiras, que vão da maior metrópole do hemisfério sul a indígenas isolados.
No topo da hierarquia, existem as diretrizes nacionais – a coordenação do PNI, que determina o calendário de imunização, obtém e distribui as vacinas e gere os dados via seu Sistema de Informação (SI). Depois, vêm os estados, responsáveis, por exemplo, por prover insumos estratégicos como seringa e agulha.
Por fim, há a instância municipal, que fornece a logística e a infraestrutura para os imunizantes chegarem aos braços da população. Se há um local acessível apenas por barco na Amazônia, por exemplo, faz sentido que as autoridades locais – que dominam as particularidades geográficas e sociais melhor que os servidores federais – fiquem responsáveis por fazer o imunizante chegar a esse povoado isolado.
Um terceiro motivo para o sucesso do PNI é o mero fato de termos um sistema público de saúde de acesso gratuito e universal. Basta ir a Unidade Básica de Saúde (UBS, ou simplesmente “postinho”) mais próximo com o cartão de vacinação em mãos e receber a dose sem qualquer empecilho burocrático.
É verdade que mesmo países com saúde majoritária ou inteiramente privada, como os EUA, fornecem o calendário básico de vacinação gratuitamente às crianças de baixa renda (o programa americano se chama Vaccines for Children). Mas a distribuição das vacinas não pode se aproveitar de uma infraestrutura de saúde pública pré-existente, o que se reflete nos dados: apenas 72,8% dos bebês americanos entre 19 e 35 meses receberam as sete vacinas recomendadas nessa faixa etária – e o problema afeta desproporcionalmente crianças negras e latinas.
Esse problema não se faz sentir só em aspectos óbvios – como a existência de uma rede de postos de saúde inseridos nos bairros, que já contam com a confiança da população – mas também a faces mais sutis de um programa de vacinação bem-sucedido, como a possibilidade de organizar facilmente campanhas publicitárias de conscientização.
Nas próximas seções do texto, falaremos mais sobre os fatores que levam à rejeição das vacinas, resumidos pela OMS no “Modelo dos três Cs”: conveniência (facilidade de acesso), complacência (a população não pode se esquecer que doenças são graves mesmo após décadas sem conviver com algo como sarampo) e confiança (notícias falsas e teorias da conspiração).
Se a infraestrutura evita o problema da conveniência, é impossível combater a complacência e a falta de confiança sem publicidade bem feita (alô, Zé Gotinha). Na época das campanhas contra a varíola, se estabeleceu no Brasil uma consciência aguda da importância dos imunizantes – não só entre as entidades governamentais que criaram o PNI, mas também entre os profissionais de saúde que se empenharam e a população, que internalizou a importância da precaução. A comunicação reforça os benefícios não só aos indivíduos, mas aos cofres públicos, com a redução dos gastos em saúde.
Não é coincidência, portanto, que a queda atual na nossa cobertura vacinal coincida com um momento de campanhas esparsas e insuficientes. Dentre muitos outros problemas que vamos explorar a seguir:
Queda na cobertura vacinal
O PNI ainda é um programa de referência. Mas, de 2016 para cá, a cobertura vacinal caiu. De acordo com o Datasus, no ano de 2015 o PNI aplicou 63 milhões de doses de vacina, ao todo, em território nacional. Em 2016, o começo do declínio, observou-se uma redução de 15,5%. Em 2021, foram só 37 milhões de doses.
A consequência mais ilustrativa foi a epidemia de sarampo, doença que saiu repentinamente de controle: em 2017, contava zero casos, e o país possuía um certificado de erradicação. No ano seguinte, foram 10,3 mil casos. Em 2019, 18,2 mil. A cobertura das vacinas que protegem contra o sarampo nunca foi tão baixa: ainda de acordo com o Datasus, em 2021 os números foram 73,49% para a primeira dose de tríplice viral, 51,65% para a segunda, e apenas 5,74% para dose única da tetra.
Vacinas e vacinação no Brasil: horizontes para os próximos 20 anos, um relatório de 2020 produzido pela Fiocruz, lista razões por trás de reduções como essa.
O primeiro problema é que nem sempre podemos confiar nos dados da cobertura vacinal. Com frequência, as autoridades municipais não registram as doses aplicadas, ou fazem upload dos números com atraso, no Sistema de Informação (SI) do PNI. Para não falar em problemas como erros de digitação, no caminho que os dados precisam percorrer até alcançar a base federal (passando pelos governos estaduais) ou no fato de que o Datasus pode acabar não processando as informações por incompatibilidade com o software usado pelo SI-PNI. Falamos mais sobre os problemas do Datasus neste texto.
Além dos dados, o livro elenca que, em alguns postos de saúde, faltam certas vacinas e sobram problemas – como erros na aplicação e horários incompatíveis (algumas vacinas só rolam em um dia específico, e os postos operam nos mesmos horários em que os pais trabalham, em um contexto em que uma parcela razoável da população sofre com o emprego informal e se submete a cargas maiores que 40 horas semanais).
Outras questões são a alta rotatividade de funcionários, os salários baixos e a falta de treinamento. Elas sempre existiram, mas pioraram nos últimos anos: “A falta de política que priorize o PNI e a consequência disso, o subfinanciamento, são fatores fundamentais para as baixas coberturas vacinais”, diz José Verani.
A cereja no bolo é que o calendário em si é complicado e exige uma dezena de visitas aos postos, o que desestimula mães e pais. Aqui, entra o primeiro “C” da OMS (lembra deles?): conveniência.
Um empecilho ainda mais grave é que a população mais jovem – vacinada com o calendário completo no auge do PNI –, cresceu sem sofrer com as doenças que a imunização evita. Millennials nunca viram sarampo ou poliomielite em ação. Isso dá uma falsa sensação de segurança, e essas pessoas acabam não cumprindo o calendário adulto nem levando seus filhos para cumprir o infantil. Por que se vacinar, se está tudo aparentemente sob controle?
Esse é o “C” de complacência: o interesse pela vacinação nunca foi tão baixo – algo que não necessariamente está associado a notícias falsas de WhatsApp ou teorias da conspiração.
Mas é claro que as fake news existem. São o terceiro “C”: confiança. O movimento antivacina já tem sua parcela de culpa no Brasil (ainda que não tenha alcançado dimensões estadounidenses por aqui): uma pesquisa realizada ainda em 2019, antes da novela das vacinas contra a covid-19, mostrou que 4,5% das mães e pais não vacinam seus filhos. Outros 16,5% vacinam com medo, ou não veem a importância da imunização para a saúde – entre os jovens, esse último número sobe para 23%.
Esses indicadores não devem parar de crescer enquanto a estratégia de comunicação do Ministério da Saúde permanecer falha (ou inexistente). Não se vê mais propagandas do PNI nas mídias digitais ou tradicionais – tampouco agentes de saúde distribuindo folhetos e informando a população. O Zé Gotinha caiu no esquecimento, e não é só impressão: houve uma grande queda nas verbas publicitárias para as campanhas de imunização. Dados obtidos pela agência Repórter Brasil, por meio da Lei de Acesso à Informação, mostram que o valor investido pelo Ministério da Saúde nessa área caiu de R$97 milhões, em 2017, para R$33 milhões, em 2021.
Publicidade favorável às vacinas, claro, não falta: a mera existência da gestão Bolsonaro, com seu desprezo pela saúde pública, abre espaço para o movimento antivacina ampliar sua atuação no Brasil via internet – com custo quase zero. Trata-se de uma receita desastrosa: a volta de epidemias que eram problema do passado, como o sarampo, coincide com o cenário pandêmico insistente e mal-resolvido – e uma recessão econômica global, que força a queda dos investimentos em saúde aqui e no exterior.
Não é um cenário fácil de se reverter, mas uma boa inspiração está na primeira fase do artigo da Wikipedia sobre varíola: “Varíola foi uma doença infecciosa causada por uma de duas estirpes do vírus da varíola.” Trata-se da única doença da qual se pode falar usando um verbo no passado – porque ela deixou de existir. Que venham as próximas erradicadas.
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