No dia 26 de abril de 1973 foi oficialmente instalada pelo Governo Federal a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa. Hoje, a cinquentona é uma das empresas públicas de maior sucesso no universo do agro. Para se ter uma ideia, em 2022 foram publicados mais de 29 mil artigos da Embrapa na Web of Science. No entanto, e apesar da relevância na pesquisa básica, a razão de ser da empresa vai além: seu objetivo não é competir com universidades, mas sim investir na pesquisa aplicada, especialmente respondendo a problemas trazidos pelos produtores rurais. O que, ao que parece, a Embrapa tem conseguido fazer muito bem em meio século de existência.
Traduzindo em números, segundo balanços da empresa, em 2022, ela apresentou um lucro social – ou seja, o impacto positivo da Empresa na sociedade – de R$ 125,88 bilhões, gerados a partir do impacto econômico no setor agropecuário de 172 tecnologias e de cerca de 110 cultivares [variedades de plantas de diferentes espécies vegetais destinadas à produção agrícola que resultam de programas e pesquisas de melhoramento genético] desenvolvidas pelos seus pesquisadores. Foram gerados mais de 95 mil empregos somente em 2022. Para cada Real aplicado na Embrapa em 2022, foram devolvidos R$ 34,70 para a sociedade. E esse é um número ascendente, já que em 2021, para cada um Real aplicado, foram devolvidos R$ 23,38. A Embrapa cobre todo o território nacional com seus 43 centros de pesquisa, tocados por 7891 empregados. Desses, são mais de 2 mil pesquisadores, dos quais 1970 possuem título de doutor.
Fora do laboratório e centros de pesquisa, o impacto da empresa pode ser observado a partir de um simples exemplo: a cenoura. Hortaliça presente nas feiras e supermercados o ano todo, ela é originalmente uma cultura de inverno. Estaria disponível somente em determinada época do ano e regiões específicas do país não fosse um projeto desenvolvido em 1981 pelo Programa de Melhoramento de Cenoura da Embrapa Hortaliças, em Brasília, que desenvolveu uma nova variedade, denominada Cenoura Brasília. Além de permitir a semeadura nos períodos mais quentes do ano, também possibilitou o deslocamento da produção. Assim, essa hortaliça com cultivo antes restrito ao Sul e Sudeste, se espalhou pelo Brasil. Nos anos seguintes, a partir desse melhoramento feito pela Embrapa, empresas desenvolveram outras cultivares de cenouras. Estima-se que o melhoramento genético da hortaliça foi responsável pelo aumento de 90% no rendimento da cultura nos últimos 50 anos.
A atuação da empresa, no entanto, vai muito além. A Embrapa é referência internacional pelo melhoramento genético de grãos, como milho, soja, trigo e feijão, pela revolução na produção de frutas, na pecuária e outros tantos setores do agro.. Além disso, uma das mais reconhecidas cientistas no mundo, a tcheca naturalizada brasileira Johanna Döbereiner (1924 – 2000), que revolucionou a produção no campo ao descobrir formas de fixar nitrogênio no solo através de bactérias – o que reduziu muito os gastos com fertilizantes e aumentou a produtividade –, atuou e teve uma relação muito estreita com a Embrapa Agrobiologia, um dos centros de pesquisas da Empresa em Seropédica, no Rio de Janeiro. O sucesso da empresa traz questionamentos: em um país onde é tão difícil custear pesquisas que dêem respostas para a sociedade, como o caso da Embrapa se faz tão longevo e bem-sucedido? Para muitos, a resposta está na própria concepção da Empresa, que se coloca como um elo na articulação entre os laboratórios, o campo e a mesa dos brasileiros.
Expansão da fronteira agrícola
Em meados dos anos de 1950, o Brasil já ensaiava uma política econômica desenvolvimentista. Ao mesmo passo em que a capital federal foi deslocada para o cerrado, na construção de Brasília, descobriu-se terras sem grande adensamento populacional. Pouco tempo depois, durante o regime militar, de 1964 a 1985, a política econômica se lastreou no crescimento da produção industrial e investimento em infraestrutura. Foi então que todas aquelas terras passaram a ser miradas. O período do regime militar ficou marcado na história por atentados aos direitos humanos, provocando dramas e chagas ainda não curadas em muitas famílias. Os anos de chumbo foram caracterizados, também, por uma clareza na política econômica a ser adotada: o desenvolvimento. Daí a célebre frase do então ministro da Fazenda, Antônio Delfim Neto, que ocupou o cargo entre 1967 e 1974: “é preciso fazer o bolo crescer para repartir”.
Nesse Brasil dos grandes investimentos em desenvolvimento industrial, estradas e megaempreendimentos de infraestrutura, em que se mirava um país grande também na economia, se percebeu que ainda havia muitas fragilidades na agricultura. A demanda interna por alimento crescia. O país que havia redescoberto suas terras não conseguia transformá-las em áreas agricultáveis, como era o o caso do próprio cerrado. Esse momento coincide com a criação de instituições de fomento e enlaces com fontes de financiamento estrangeiro. Em setembro de 1970, o governo, depois de um longo trabalho que mobilizou todos os ministérios, publicou o Plano de Metas para a Ação de Governo.
A leitura desse documento revela claramente o viés desenvolvimentista dos militares, sem poupar recursos para a abertura de estradas, investimentos na indústria nacional e impulso em áreas como Educação, Ciência e Tecnologia, além de políticas econômicas que sustentassem isso e alguns programas na área social. Tudo isso, é claro, com o viés de uma grande integração nacional visando o desenvolvimento, literalmente, a qualquer preço. O trabalho, que resultou no Plano de Metas, produziu um diagnóstico consistente do atual estágio do país. Foi aí que ficou evidente que o modelo de agricultura não cabia mais nesse Brasil sonhado, já que estava muito concentrado em regiões subtropicais e com pouca quantidade de produção e diversidade de culturas.
O governo entendia, então, que havia uma emergente necessidade da expansão da fronteira agrícola, e que sem tecnologia, ciência e profissionais capacitados isso não seria possível. O ministro da Agricultura da época, Luís Fernando Cirne Lima, orientado pelo Plano de Metas, criou uma comissão para elaborar um plano de diagnóstico para modernizar a agricultura nacional. Capitaneada pelo engenheiro Agrônomo Otto Lyra Schrader, diretor da Divisão de Pesquisa Fitotécnica, do Departamento Nacional de Pesquisa Agropecuária (D.N.P.E.A.), e por José Irineu Cabral, do Instituto Interamericano de Ciências Agrícolas (IICA), a comissão concluiu seus trabalhos com a publicação do relatório intitulado “Sugestões para a Formulação de um Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária”. É o chamado “Livro Preto”, assim conhecido porque o relatório foi entregue com uma capa totalmente preta, sem nada escrito.
O Livro Preto, formatado em junho de 1972, acabou sendo o documento estratégico base para decisões governamentais no processo de reformulação do Sistema de Pesquisa Agropecuário do País. Em linhas gerais, dizia que o D.N.P.E.A não dava mais conta de articular sistemas estaduais de extensão, pesquisa e assistência rural e indicava a necessidade de criação de uma nova estrutura. Essa, uma empresa estatal, haveria de reaproveitar a estrutura do antigo Departamento, inclusive laboratórios, mas rearranjar todo o sistema tendo como base a pesquisa aplicada. Porém, e aqui há uma diferença que foi muito significativa, essa empresa não deveria se subordinar a estrutura administrativa direta. Além da autonomia na gestão, isso asseguraria a injeção de recursos diretos do Tesouro Nacional e de outras formas de fomentos a serem geridas diretamente pela empresa.
Assim foi criada, em 1973, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), com o objetivo de desenvolver a base tecnológica de um modelo de agricultura e pecuária genuinamente tropicais. Isso significa ocupar as terras também entre os trópicos e nelas produzir tanto quanto nas áreas subtropicais.
Pesquisa circular: a partir do produtor e para o produtor
As duas primeiras necessidades identificadas – ciência, tecnologia e gente capacitada – foram sanadas com o rearranjo administrativo do antigo D.N.P.E.A, fazendo com que a Embrapa não perdesse a característica do Departamento de articular uma série de agentes nos estados, nos municípios, universidades e mesmo na iniciativa privada. Esse rearranjo também garantiu fontes de financiamento e com elas a modernização das estruturas físicas. Mas e os profissionais capacitados, capazes de mobilizar essa estrutura para pesquisa?
No Brasil, no início da década de 1970, já havia universidades referências nas ciências agrárias. O foco, porém, ainda não era uma agricultura tropical. O Livro Preto deixa claro que a Embrapa não deveria se constituir como um organismo de pesquisa básica, uma vez que isso já era feito nas universidades, e que caberia a ela ser um agente de articulação entre a pesquisa básica e a aplicação no campo – o que não quer dizer que em determinados casos não desenvolvesse pesquisa de base. Novamente, Johanna Döbereiner e sua aproximação com a nova empresa são exemplos dessa definição, pois ela já vinha desenvolvendo seus estudos quando da criação da Embrapa.
A saída foi formar profissionais com um outro olhar sobre a pesquisa, especialmente com um viés de tropicalizar as culturas fora do Brasil. Isso foi feito na Europa, mas essencialmente nos Estados Unidos. Para além das relações políticas entre países, o modo de agricultura que os norte-americanos desenvolviam interessava o Brasil especialmente pela produção em escala, em grandes áreas.. “Os Estados Unidos foram o berço da chamada Revolução Verde, entre os anos de 1960 e 1970, onde se passou a trabalhar a terra com adubação, com fertilizante de origem química, com defensivos. É a origem de toda essa ‘revolução da agricultura industrial’”, observa Bruno Brasil, pesquisador e atual membro da Superintendência Estratégica da Embrapa.
Toda essa movimentação se deu com muito pragmatismo e objetividade, como lembra Murilo Flores, que foi presidente da Embrapa na década de 1990. Esse viés recordado por Murilo ainda está presente na fala de Bruno: “a Embrapa tinha que resolver um problema do produtor rural”. Ou seja, era a partir de uma demanda do produtor que o sistema haveria de se movimentar, da pesquisa à articulação com outros agentes da cadeia produtiva. “Importávamos feijão do México só para ter um exemplo de alimentos básicos que não éramos capazes de produzir para alimentar todos os brasileiros”, diz Bruno.
Hoje, segundo dados da própria Embrapa, a partir de pesquisa de melhoramento de solo e genética de plantas, o Brasil é o maior produtor de feijão comum do mundo. Os estados do Paraná, Minas Gerais e Bahia são os principais produtores. Além disso, um dos centros nacionais mais antigos da Embrapa é o de arroz e feijão, criado em 1974 em Goiânia, Goiás, dentro do bioma cerrado, aquele mesmo considerado bem pouco agricultável no início de 1970. “Desenvolvemos práticas de manejo para corrigir o Ph do solo, entre outras ações como sistemas de plantio direto e a própria fixação biológica de nitrogênio no solo. Todas as condições que foram permitindo que a fronteira agrícola subisse até o cerrado. Talvez esse seja um dos tipos de solo que mais conhecemos, em decorrência da necessidade de transformar essa realidade. É Roma do centro Oeste”, completa Bruno.
Década de 1990 e os efeitos da Constituição cidadã
Murilo Flores considera que o momento da criação da Embrapa se deu da conjunção de fatores que levou a essa receita de sucesso. “Era o tempo das empresas estatais, muito queridas dos militares. Por isso, ela ganhou esse formato. Além disso, havia um plano bem claro de modernização e expansão da agricultura e isso precisava ser cumprido”, avalia. Tal consideração é plenamente comprovada na leitura do Plano de Metas e do Livro Preto, mas também pela criação de organismos como a Embraer (1969), o Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais – Inpe (1963), Correios (1969), Serviço Federal de Processamento de Dados – Serpro (1970), Telebrás, Embrapa e Infraero (1972), Companhia de Desenvolvimentos dos Vales do São Francisco e Parnaíba – Codevasf e Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência – Dataprev (1974), entre outras. Segundo informação do Ministério de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, ao todo, entre 1964 e 1985 foram criadas 47 estatais.
No entanto, se o desenvolvimentismo gestou a Embrapa como empresa pública de sucesso, os novos ventos já faziam esse modelo ser esgotado. “Inaugura-se uma nova fase do Brasil com a Constituição de 1988 e a sociedade passou a fazer uma série de demandas que antes não estavam previstas. Mas isso foi em tudo, não só na agricultura, foi também na saúde e uma série de áreas. E a Embrapa fica diante de um novo mundo”, recorda Murilo.
Nesse mundo novo começam a surgir as demandas ambientais. A consciência sobre os danos causados ao meio ambiente ainda não era tão avançada como hoje, mas alguns movimentos, como os decorrentes da Rio-92, já começavam a reconfigurar o cenário. Os próprios consumidores começavam a se preocupar com a saúde e a questionar o uso excessivo de agrotóxico. Há, ainda, uma série de agricultores que passavam a reclamar por não terem suas demandas atendidas pela Embrapa, especialmente vindos da agricultura familiar. Ou seja, a verticalização do regime militar, o desenvolvimentismo e a ideia de que a pesquisa deve começar a partir de uma demanda do produtor rural e se encerrar na aplicação do resultado da pesquisa nas terras do produtor não cabiam mais.
Tais mudanças na estrutura social fizeram com que a Embrapa passasse a considerar outros agentes em seus processos, como cooperativas ou mesmo grupos de pequenos produtores rurais. Em certa medida, as demandas da Empresa não saíam mais só de um tipo de produtor rural – aquele agente da expansão da fronteira agrícola – mas de uma ampla gama de produtores rurais e da própria sociedade consumidora de alimentos. Somando-se a isso, a Constituição de 1988 abriu caminho para evolução da legislação, criando regulações sobre territórios para preservação como códigos florestais para reservas legais ou preservação de territórios destinados a povos originários.
Como consequência, as pesquisas da empresa deixam de se focar exclusivamente no melhoramento genético de plantas ou técnicas de manejo animal para grandes áreas com o objetivo final de aumentar a produtividade. Preservar também passa a ser um imperativo, o que leva a uma otimização dos espaços de produção. A mudança fica mais evidente na a pecuária, uma vez que não se pode mais abrir campos indiscriminadamente para engorda de gado. As pesquisas ajustam seus focos e passam, por exemplo, a desenvolver produção de pastagens mais nutritivas em áreas menores, assegurando a preservação de áreas protegidas e alimento de qualidade aos bovinos que, consequentemente, geram uma carne de mais qualidade. O próprio manejo do gado precisa mudar, mantendo os animais menos tempo em engorda, o que representa menos geração de carbono para atmosfera. Chegar a esses resultados requer tanto melhoramento genético de pasto como dos próprios animais.
Todo esse cenário remodelou o olhar da Embrapa sobre o Brasil. E, evidentemente, aquela primeira geração de pesquisadores foi fundamental para esse rearranjo. Entre tantos, destaca-se Eliseu Alves, Ph.D em Economia Agrícola pela Purdue University Indiana (EUA) (1972), mestre pela mesma instituição de Indiana (1968) e graduado em engenharia agrônoma pela Universidade Federal de Viçosa (1954). Além de pesquisador, ele participou do grupo que concebeu a empresa a partir das diretrizes do Livro Preto e só encerrou suas atividades em abril de 2023, aos 92 anos. A criação dos centros de pesquisas por produtos, como a Embrapa Trigo, Embrapa Soja, por exemplo, e o envio de pesquisadores para qualificação no exterior foram um dos seus feitos como membro do grupo fundador.
Seu Eliseu, como é conhecido e referenciado por todos que falam da história da Embrapa, também dedicou parte de sua carreira à pobreza rural. Essa sua visão, novamente, foi importante para essa virada da Embrapa a partir dos anos de 1990. “Como cientistas, nós temos a capacidade de pegar o que é mais produtivo na ciência e transformar em riqueza. Isso transformou a Embrapa no coração do Brasil”, disse, em cerimônia de despedida realizada em janeiro de 2023.
As transformações na produção de alho
Presente na mesa de quase todas as casas brasileiras, o alho pode ser visto como um dos muitos cases de sucesso da Embrapa. Talvez a lembrança ainda seja meio vaga, mas, até a década de 1990, quem não podia plantar alho em casa pagava caro pelo produto. Segundo dados do IBGE,
mesmo depois da expansão da cultura em meados do século XX, o alho produzido no Brasil não passava de oito toneladas e era de baixa qualidade. Popularizado por aqui especialmente pela culinária portuguesa, que também incorpora hábitos da cozinha árabe, desde os anos de 1960 o Brasil era forçado a importar o alimento.
Atualmente, o cerrado, que se configurou como grande desafio em termos tecnológicos e de pesquisa para a expansão agrícola pelas condições de solo, abriga uma produção que chega a 25 toneladas de alho por hectare. Na safra de 2021/22, segundo a Embrapa, a produção brasileira de alho foi de 220 mil toneladas, em uma área plantada de 16 mil hectares, e com rendimento médio de 13.750 kg/ha. Não é preciso calcular muito para constatar que a oferta no mercado nacional aumentou e o preço caiu. Além disso, a qualidade melhorou muito e o alho com bulbos pequenos e disformes virou coisa do passado.
Este resultado é fruto de 30 anos de pesquisas na Embrapa Hortaliças, que fica no Distrito Federal. Foi a partir desses estudos que se chegou ao “alho-semente livre de vírus”. Nos dez primeiros anos, o esforço foi para a pesquisa de aprimoramento do protocolo de limpeza, identificar as viroses, desenvolver os protocolos de indexação e avaliar como as plantas livres de vírus se comportariam no campo de produção comercial. Depois, foi preciso levar a tecnologia para o agricultor e garantir a manutenção do “alho-semente livre de vírus” nas regiões produtoras. Para se ter ideia, são necessários quatro anos para produzir matrizes do alho nos laboratórios e telados da Embrapa. “Todo o processo começa com o cultivo in vitro de ápices caulinares, ou meristemas, estruturas de crescimento da planta de alho, potencialmente livres do vírus. O vírus consegue colonizar toda a planta, menos o meristema, que é uma estrutura que ‘filtra’ a presença dele”, explica o pesquisador da Embrapa Hortaliças Francisco Vilela Resende. Depois, as plantas ainda passam por estágios de aclimatação em viveiros até que fiquem prontas para gerar bulbos que vão para empresas e produtores rurais, mediante contratos de cooperação técnica ou transferência de tecnologia.
É essa transferência de tecnologia que corporifica a razão de ser da Embrapa. Isso porque ela pode tanto se apoiar na pesquisa básica desenvolvida nas universidades e aplicá-la no campo, como desenvolver sua própria pesquisa com vistas a uma demanda dos produtores ou do mercado consumidor. Assim, o elo se fecha, aumentando a qualidade e produtividade, beneficiando quem produz e quem consome.
Voltando ao exemplo do “alho-semente livre de vírus”, essa tecnologia é adotada tanto por grandes quanto pequenos produtores. A estimativa da Embrapa é de que pelo menos 30% do aumento de produtividade nesta cadeia seja devido à adoção dessa tecnologia, impactando especialmente pequenos agricultores que historicamente usavam sementes de má qualidade. Isso mudou a realidade de muitas famílias no campo, como a de José Borges de Brito, conhecido como Valdez, produtor de alho na região de Cristópolis (BA). “Hoje eu tenho a minha renda e mantenho minha família tranquila, sem precisar ir buscar um emprego lá fora. Essa é uma tecnologia que mantém a gente na roça”, diz.
Na “lida diária”, Valdez confirma na prática os dados da Embrapa. “Antes a minha produtividade era de três a três e meio ton/ha usando o alho infectado sem nenhuma tecnologia, nenhum acompanhamento. A gente achava que essa produtividade ainda era boa, porque trabalhava ‘no escuro’. Hoje, trabalhando com o ‘alho-semente livre de vírus’ estou produzindo de 15 a 16 toneladas por hectare. Foi um avanço muito grande”, conta. A tecnologia deste alho chegou à região de Cristópolis entre os anos de 2000 e 2003, por meio de um contrato assinado entre a Embrapa e a Secretaria Municipal de Agricultura. Foram instalados cinco telados para a realização de testes em campo, um deles na propriedade de Valdez, que permanece em atividade até hoje.
Desafios para manter a relevância no agro
A Embrapa chega aos 50 anos colecionando histórias como a da família e Valdez e, também, com protagonismo no agronegócio. No entanto, esse espaço não é mais confortável como já foi nas décadas passadas. Conversando com pesquisadores, ex-diretores e produtores rurais de todos os portes, fica evidente que, se os anos de 1990 foram importantes para um rearranjo de rota na Embrapa, algo similar deve ocorrer ainda nesta segunda década dos anos 2000. Afinal, o espaço ocupado somente pela Embrapa começa a ser pleiteado por outros agentes, outros centros de pesquisas, cooperativas e empresas privadas.
Isso pode ser observado, por exemplo, no destaque que o Rio Grande do Sul está conquistando no cultivo de oliveiras. Segundo Instituto Brasileiro de Olivicultura (Ibraoliva), em 2022 a produção gaúcha correspondeu a 75% de toda a produção nacional de azeite. Na safra 2021, chegou-se a 448 mil litros de azeite de oliva extra-virgem, alta de cerca de 120% em relação à safra anterior. Quem quiser incursionar por essa nova cultura nos pampas encontrará várias fontes, não só a Embrapa. Terá fácil acesso a empresas e associações da Argentina e da Espanha, por exemplo.
Na segunda metade da década de 1990, a tecnologia também avançava a passos largos em diversas frentes, inclusive da iniciativa privada. Somando-se a isso, novas legislações começam a regulamentar uma outra grande transformação centrada na tecnologia e inovação, como a chamada “lei de patentes” (Lei Nº 9.279, de 14 de maio de 1996), que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial e que permitiu a quebra de muitos monopólios de tecnologias.
Outro caso é a Lei de Proteção de Cultivares (Lei Nº 9.456, de 25 de abril 1997), que tem objetivo de proteger os direitos dos obtentores, criando um ambiente de estímulo à pesquisa e ao desenvolvimento de novas cultivares. Essas leis criam a a possibilidade de que outros façam aquilo em que a Embrapa foi pioneira. A soja, por exemplo, tinha 80% de suas sementes vindas das pesquisas da Embrapa. Quando se passa a ter a proteção intelectual da semente, é preciso pagar royalties, algo que só acontecia antes com semestres híbridas. Agora, quando se faz qualquer melhoramento se passa a ter a proteção de patente. Com isso, as próprias empresas privadas, cooperativas ou associações passaram a ver aí um mercado.
Xico Graziano, engenheiro agrônomo e doutor em administração, uma das referências no agronegócio brasileiro, concluiu a faculdade na época em que a Embrapa foi criada. Ele lembra que a Empresa foi uma grande novidade e transformou a agricultura nacional. “Fazer 50 anos é uma glória, mas também traz uma constatação: poucas empresas, privadas inclusive, conseguem acompanhar o ritmo das mudanças socioeconômicas e decaem. A Embrapa precisaria se reinventar para comemorar olhando para o futuro, não apenas se gabando do passado”, observa.
Um olhar no futuro
Os desafios são muitos, e as visões para o futuro da empresa também. “Eu não tenho respostas prontas para o novo propósito da Embrapa. Ninguém tem, ao certo. Seria com certeza uma estratégia relacionada à agricultura regenerativa, à sustentabilidade em condições tropicais e subtropicais, à bioeconomia agrícola”, arrisca Xico Graziano.
Ao que parece, a Embrapa demonstra olhar na mesma direção. “Definitivamente, o paradigma da sustentabilidade está incorporado nas pesquisas da Embrapa. É o modelo de uma agricultura de baixo carbono para os trópicos. É um modelo no qual nós trabalhamos há décadas. Já é uma realidade no século XXI, e tende a ser cada vez mais consolidado”, pontua Bruno Brasil, membro da Superintendência Estratégica da Embrapa. De fato, manejos e melhoramento das pastagens dos rebanhos, além de pesquisas sobre melhoramento do solo para que se use cada vez menos agrotóxicos e fertilizantes químicos já são uma realidade na Embrapa.
No entanto, em conversas com pesquisadores e produtores rurais, se tem a impressão de que no fundo desejam que se vá além. Se na década de 1970 a expansão da fronteira agrícola via desenvolvimentismo era o objetivo claro na Embrapa, e se na década de 1990 houve uma “virada cidadã”, para eles, o grande projeto da Embrapa do século XXI não é claro. Além disso, alguns setores acreditam que, como uma estatal cinquentona, a Empresa também não se move com agilidade. Bruno reconhece isso, mas chama atenção para o fato de que a pesquisa realizada hoje não pode mais ser comparada à do século XX, já que o próprio papel do cientista mudou. “Um pesquisador que quer resolver tudo sozinho, que fica só no laboratório, que não se comunica, que não expõe seus resultados para a sociedade, que se mantém naquele estereótipo de cientista é como um dinossauro que foi extinto”, aponta.
Este ponto levantado por Bruno também passa pelas questões de financiamento das pesquisas. Mesmo em um país como o Brasil, que amealha centavos para conduzir projetos revolucionários, e que vem há pelo menos seis anos duros de cortes na área de ciência e tecnologia, os resultados da Embrapa seguem positivos. O pesquisador observa que a empresa não está imune a revezes de conjunturas econômicas e políticas, mas o desenho da estatal lá na década de 1970 garante certa resiliência graças à injeção direta de recursos do Tesouro Nacional. É diferente, por exemplo, das pesquisas em universidades. Em 2023, o orçamento da Embrapa ultrapassa R $3,6 bilhões, sendo 33% do valor des recursos do Tesouro. Os outros 67% são de recursos de outras fontes, vindos via projetos. Destes, 74% são recursos captados de fontes públicas, organismos como CNPQ, Fapesp, Fapergs, etc. Isso demonstra a importância do papel do Estado no financiamento da pesquisa, desenvolvimento e inovação.
São nesses Projetos que, para Bruno, o papel do pesquisador muda, pois é ele o agente que deve buscar recursos, compor relatórios e apresentar resultados, já que é quem melhor domina a pesquisa e pode projetar transformações de impacto social. Hoje, na realidade dos grandes consórcios de pesquisa, a regra é “competição, competição e cooperação pública e privada, acelerando um sistema de produção de conhecimento que tem divisão de tarefas”, diz.
Pesquisa pública e crescimento econômico e social
A cifra de mais de R$3,6 bilhões enche os olhos de qualquer centro ou consórcio de pesquisa, mas é evidente que uma estatal desse porte e com essa idade tem gargalos de gestão – e o próprio Estado está olhando para isso. O Ministério da Agricultura e Pecuária criou um grupo de trabalho para avaliar e aprimorar o sistema de pesquisa da Embrapa. Até o fechamento deste artigo, o Ministério não havia informado quanto a divulgação dos resultados desse trabalho.
Apesar da necessidade de mudanças, olhar para a história da conformação e parcerias dessa empresa pública de reconhecimento internacional pode ser um caminho para assegurar a relevância da Embrapa nos próximos 50 anos.
Afinal, o Brasil é novamente um país da fome, capaz de produzir toneladas de grãos e de conviver com pessoas no flagelo da insegurança alimentar. Nesta mesma linha, Bruno recorda novamente Eliseu Alves e sua luta no combate à pobreza rural. “Temos ainda um pequeno grupo de produtores rurais de escala gigantesca que respondem por grande parte desse PIB agrícola e da exportação. Por outro lado, temos uma enorme quantidade de outros produtores que são pequenos, médios e muitos deles em vulnerabilidade socioeconômica. Olhe para a pobreza rural no semiárido, mais de 40% está lá”, aponta. Talvez, como o próprio Bruno diz, capitanear a redução das desigualdades e a erradicação da fome no Brasil não deva ser tarefa da Embrapa. Mas, certamente, ela é um agente fundamental nesse processo, assim como é na concepção de uma nova revolução agrícola, àquela que produz comida para todos sem agredir o meio ambiente.