Da expansão à evasão: um panorama da educação superior privada do Brasil no século XXI
Políticas de inclusão e legislações que facilitaram a expansão do ensino superior privado nos últimos anos levaram a um crescimento do setor, que hoje representam mais de 88% das IES no país
Publicado em 10/10/2022 - 19h45
Daniel Liberatore/Arte IQC
A educação superior no Brasil tem sido, ao longo de sua história, palco de disputas entre projetos de sociedade que se manifestam em diferentes modos de conceber o papel social desta instituição. Se por um lado as universidades públicas, que datam de 1930, seguem calcadas no princípio constitucional do padrão tradicional de educação superior, assentado no tripé ensino-pesquisa-extensão, as instituições privadas seguiram uma lógica ancorada em diretrizes empresariais e de mercado, baseado em uma educação desvinculada da pesquisa, seguindo uma linha tecnicista, que resultaram no aumento vertiginoso de oferta de cursos ao longo das últimas décadas.
Atualmente, mais de 88% das instituições de ensino superior brasileiras são privadas, o que coloca o país como “o segundo na América Latina com a graduação mais privatizada, ficando apenas atrás do Chile”, afirma o professor de políticas educacionais João Ferreira de Oliveira, da Universidade Federal de Goiás (UFG).
De acordo com o mais recente Censo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), das 2457 Instituições de Ensino Superior (IES) do país, 2153 eram privadas e apenas 304 públicas em 2020. Destas, apenas 203 (8,25%) eram universidades, ou seja, somente destas é requerido o princípio constitucional da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. A maioria absoluta das IES, 2.253 (91,75%), era representada por Centros Universitários, Faculdades, Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFET) e Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFET), sem compromisso com a realização de pesquisa e extensão.
O modelo atual de ensino superior predominante no país permitiu, por um lado, um aumento no número de cidadãos com acesso à formação superior. Por outro, distanciou muitos do universo da pesquisa e extensão. Hoje no Brasil, mais de 95% da produção científica vem das universidades públicas (federais e estaduais), que representam menos de 12% do ensino superior do país, segundo relatório de 2018 da Clarivate Analytics para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Para entender o cenário atual, e principalmente as reformas que ocorreram nas duas últimas décadas, é preciso inicialmente contextualizar algumas mudanças do final da década de 1960, quando se instituiu um dos marcos legais mais importante no processo de transformação do ensino superior do país: a Reforma Universitária de 1968, ou Lei nº 5.540, apontada por muitos pesquisadores como o início do predomínio do setor privado sobre a educação superior no Brasil.
O processo de elaboração da Reforma Universitária aconteceu em meio a um contexto de governo militar, em que havia uma percepção de que, para dar conta da demanda do crescimento econômico do país, era preciso ampliar a oferta de vagas do ensino superior, até então dominado pelo ensino público. Ao prever que o ensino superior deveria ser oferecido em universidades e, “excepcionalmente, em estabelecimentos isolados”, ela acabou viabilizando a criação de dois sistemas de ensino distintos: o de caráter público, estritamente acadêmico, e o privado, a partir de uma educação desvinculada da pesquisa, ministrada em instituições privadas e isoladas, em boa parte, financiadas com verba pública por via de isenções fiscais e auxílios diversos.
A abertura para cursos privados se torna evidente a partir dos dados de pedidos para criação de novos cursos em estabelecimentos isolados que ocorreu entre os anos de 1962 a 1972. Neste período foram registrados 1.136 pedidos, sendo 897 (79%) deferidos. Destes, cerca de 55% dos pedidos ocorreram no período 1970/1972.
A partir de então, o Brasil viveu uma explosão das matrículas na década de 1970, que resultou em um refluxo do setor nos anos 1980 e uma retomada no crescimento da educação superior paga a partir da segunda metade dos anos de 1990, quando se concentra a maior parte das ações de Estado que facilitaram o ingresso de estudantes por financiamento. Para se ter uma dimensão do quanto essas mudanças permitiram o crescimento de IES privadas, o número de faculdades de Direito no país cresceu, por exemplo, de 235 cursos em 1995 para 1502 cursos em 2018, um aumento de 539%.
Junto com o aumento na oferta de cursos, houve também um crescimento no número de brasileiros matriculados no ensino superior ao longo dos últimos anos. Segundo o Censo da Educação Superior do Inep/MEC de 2020, são mais de 8,6 milhões de alunos. Em 2000, o número não passava de 3,3 milhões. Este crescimento é atribuído também a investimentos recentes do governo federal em programas de fomento à educação superior. A seguir, destacamos os principais marcos do ensino superior privado no Brasil das últimas três décadas:
1990-1999: Diretrizes legais da expansão do ensino superior privados
Após a expansão ocorrida nos anos 1960 e 1970, o sistema de ensino superior praticamente estagnou na década de 1980, chegando a declinar no período 1980/1985. Foi a partir da década de 1990 que o crescimento do setor foi retomado, ao mesmo tempo em que a rede federal de educação superior sofria cortes orçamentários que limitavam sua expansão. As reformas educativas que iniciaram na década de 1990 partiram da ideia de que os sistemas de ensino deveriam se tornar mais diversificados e flexíveis, objetivando maior competitividade com contenção de gastos. Seguindo essa diretriz, o governo brasileiro vem reformando a educação superior por meio de uma diversidade de instrumentos normativos, como leis ordinárias, decretos, portarias, medidas provisórias etc., que resultaram em uma centralidade do ensino superior privado.
Um marco dessa expansão é o ano de 1996, com a promulgação da Lei no 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação, ou LDB), em que o Estado assumiu papel destacado no controle e na gestão das políticas educacionais, ao mesmo tempo em que liberalizou a oferta da educação superior pela iniciativa privada. Ela passou a prever que a educação superior “será ministrada em instituições de ensino superior públicas ou privadas, com vários graus de abrangência e especialização”, e teve como base o princípio constitucional de 1988, que no artigo 209 estipulava que “o ensino é livre à iniciativa privada”.
Assim, a LDB serviu como base para o processo de reforma da educação superior, em atendimento às orientações dos organismos multilaterais internacionais para a implantação do modelo de Estado neoliberal, em que a lógica mercantilista assume a centralidade. Ele estabelece à rede privada o processo de expansão, enquanto o Estado se torna apenas regulador e controlador desse serviço, por meio da criação de mecanismos de credenciamento e avaliação. Foi nesse período que várias universidades formalizaram suas iniciativas Educação à Distância (EAD), até culminar com a criação da Secretaria de Educação a Distância (SEED), do Ministério da Educação (MEC). Naquele mesmo ano o EAD no Brasil passou a contar com uma legislação abrangente que hoje garante, por exemplo, a validade de diplomas emitidos pelos cursos nesta modalidade.
No ano seguinte, o decreto nº 2.306/97 estabeleceu oficialmente a tipologia das instituições de ensino superior, regulamentando o disposto na LDB, criando a figura dos Centros Universitários e possibilitando o oferecimento de cursos superiores apenas através do ensino, sem a inclusão da pesquisa e da extensão como funções que, associadas ao ensino, cumpririam o dispositivo constitucional. A partir de 1997 o país registra, então, um boom expansionista do setor privado de educação superior, com um crescimento de 132% das matrículas em cursos de graduação presenciais. De modo semelhante, o número de instituições privadas ampliou-se de 764 IES em 1998, para 1.789 IES, em 2004. Portanto, aumento de 160%, ou seja, maior que o crescimento relativo às matrículas.
2000-2006: Políticas de financiamento e expansão consolidada
Com uma recuperação estável do setor e a oferta de novos cursos, aumentaram também as demandas por matrículas. Foi nesse momento, no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), que se criou o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), pela Lei n° 10.260, de 12 de julho de 2001, “destinado à concessão de financiamento a estudantes regularmente matriculados em cursos superiores não gratuitos”. Este é um programa do Ministério da Educação (MEC) destinado à concessão de financiamento a estudantes regularmente matriculados em cursos superiores presenciais não gratuitos e com avaliação positiva nos processos conduzidos pelo MEC. Desde sua implantação, as mudanças no ensino superior privado se acentuaram: em 1998, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 1998), 78,5% das IES eram privadas, com um montante de 62,1% das matrículas. No governo Luiz Inácio Lula da Silva se dá continuidade às políticas que favoreceram a expansão do setor educacional privado, com leis e decretos que discorrem sobre a regularização e a organização da educação a distância; disciplina os centros universitários; e dispõe sobre a regulação, supervisão e avaliação das instituições. Dentre os principais decretos estão o de nº 4.914, de 11 de dezembro de 2003, que concedeu autonomia aos centros universitários (ou seja, eles passaram a ter autonomia para criar cursos a partir da premissa de serem instituições universitárias), o de nº 5.622, de 19 de dezembro de 2005, que regulamenta a educação à distância (EAD) no Brasil, e o de nº 5.786/2006, sobre a concepção e grau de autonomia dos centros universitários, que no artigo 2º definiu que “os centros universitários (…) poderão criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e programas de educação superior, assim como remanejar ou ampliar vagas nos cursos nos termos deste decreto”.
Além disso, diante de uma demanda não contemplada pelo Fies, sobretudo pela incapacidade de oferecer as garantias exigidas para se obter o financiamento, e da crescente proporção de vagas não preenchidas ao longo do período 1999-2004, a destinação de recursos para a educação superior privada foi ampliada por meio do Programa Universidade para Todos (PROUNI), estabelecido pela Lei Federal nº 11.096, de 13 de janeiro de 2005. Ele consiste, basicamente, na concessão de bolsas de estudo integrais e parciais (de 50%) a estudantes de cursos de graduação em instituições privadas de ensino superior. O benefício prioriza estudantes de baixa renda, vindos de escola pública ou que tenham estudado com bolsa integral em escola particular. Além disso, para ter acesso às bolsas, é preciso, antes de passar pela seleção aplicada pela instituição privada, ter se submetido ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Com a facilidade na criação de novos cursos e o aumento do incentivo governamental a jovens estudantes, a demanda por educação superior, medida pelo total de inscrições nos exames vestibulares, cresceu 161,6% entre 1990 e 2004. No mesmo período, a oferta de vagas ampliou-se em 360%. Com a expansão da oferta, reduziu-se a proporção de candidatos por vaga na rede privada , que caiu de 2,9 para 1,3.
2007-2022 – Da expansão à evasão
O aumento da procura por formação superior e os processos legais de facilitação para a implementação de novas instituições de ensino superior no país levaram a um importante movimento de compra e venda de IES a partir de 2007, com a criação de redes de empresas por meio da compra e (ou) fusão de instituições de ensino superior privadas do país por empresas nacionais e internacionais de ensino superior e pela abertura de capitais destas nas bolsas de valores, configurando a formação de oligopólios (número reduzido de grandes empresas que atuam num segmento do mercado), que passam a ter o controle do mercado da educação superior do país. Atualmente, quatro grandes grupos, que têm grande parte do capital oriundo de instituições estrangeiras, se destacam: Anhanguera Educacional s.a., com sede em São Paulo; a Estácio Participações, controladora da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro; a Kroton Educacional, da Rede Pitágoras, com sede em Minas Gerais; e a empresa seb s.a., também conhecida como “Sistema COC de Educação e Comunicação”, com sede em São Paulo.
Em paralelo às movimentações de mercado, o governo Dilma Roussef promoveu medidas de ampliação dos programas de financiamento. No caso do FIES, este foi alterado pela Lei nº 12.513, de 26 de outubro de 2011, incluindo-se a possibilidade de financiamento ao estudante da educação profissional e tecnológica, em caráter individual, ou por empresas para seus empregados, além de juros de 3,4% e maior tempo de carência. O número de vagas oferecidas para participar do financiamento teve seu ápice em 2016, quando o MEC ofereceu 325 mil inscrições, com redução para menos da metade nos anos seguintes.
Além da expansão das políticas de inclusão e do crescimento das instituições privadas, outro fator que contribuiu para o aumento no número de matrículas foi o crescimento da oferta de cursos de Educação à Distância (EAD) por serem mais em conta, em um processo que se acentuou principalmente a partir da pandemia de Covid-19. De acordo com o Censo de Educação Superior 2020, dos mais de 3,7 milhões de ingressantes daquele ano em instituições públicas e privadas de ensino superior, mais de 2 milhões (53,4%) optaram por cursos a distância e 1,7 milhão (46,6%), pelos presenciais. Nos últimos 10 anos, o número de matrículas em cursos presenciais diminuiu 13,9%, enquanto nos cursos EAD aumentou 428,2%.
Em 2019, embalado pelo aumento no número de matrículas e em uma tentativa de aproveitar o que chamou de “onda liberal” provocada pelo governo Bolsonaro, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub (2019–2020), convocou, em 2020, dirigentes do ensino superior a se organizarem para autorregular o setor. A proposta não vingou. No entanto, nos últimos anos, o governo promoveu algumas mudanças importantes nos programas de financiamento. Em dezembro de 2021, o Governo Bolsonaro decretou uma Medida Provisória que abriu o acesso de alunos de escolas particulares ao Prouni. Especialistas indicaram, então, que a mudança na regra poderia atender a um lobby do setor privado de educação, pois quanto mais alunos puderem disputar as bolsas do Prouni, maior será a chance de preencher 100% das vagas e de possibilitar o abatimento de impostos federais devidos pela instituição de ensino. Já em julho de 2022, Bolsonaro sancionou a Lei 14.375, de 2022, que permitiu o abatimento de até 99% das dívidas de estudantes com o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). A medida vale apenas para quem aderiu ao financiamento a partir do segundo semestre de 2017.
O aumento na oferta de cursos e a facilidade de ingresso no ensino superior também têm provocado um aumento da evasão de estudantes. Os anos de 2020 e 2021 registraram os maiores índices de evasão de alunos do ensino superior privado no Brasil de toda a série histórica. Em 2021, foram cerca de 3,42 milhões de estudantes que abandonaram as universidades privadas — uma taxa de 36,6% de evasão.
O número só ficou atrás do registrado no ano anterior, quando cerca de 3,78 milhões de alunos evadiram das instituições, chegando a 37,2% de abandono. Os índices são de uma projeção feita pela Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação (Semesp), instituto que representa as mantenedoras do ensino superior no Brasil, . Quando o dado do Ensino a Distância (EAD) é separado do ensino presencial, a taxa é ainda mais alta. Em 2021, houve 43,3% de evasão no EAD — número maior, inclusive, que o de 2020 (40%). Além disso, apesar de todo o processo de expansão nas últimas décadas, o acesso ao ensino superior brasileiro ainda está restrito a uma parcela relativamente pequena da população. Dados do Inep/MEC 2021 mostraram que apenas 18,1% dos jovens de 18 a 24 anos estão matriculados no ensino superior, uma porcentagem distante daquela prevista pelo Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado em 2001 por meio da Lei nº 10.172, que mirava índice de 33% em 2024.
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